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Dança no Labirinto

Estava calor demais. Mais do que o próprio quarto.

Ela pensava na próxima, ele pensava nos próximos. Ambos corpos desfalecidos, amortecidos porém vivos. O suor secando na pele. O peito dela reluzia. Subindo e descendo em suspiros, recuperando as forças que ele havia tomado. Ele recuperando o seu estado racional, tentando não se perder nela. Ela só pensava na próxima. Seu sorriso era diferente agora. O olhar esguio, os olhos semi-cerrados tentando exibir alguma sensualidade inocente. Os olhos se perdiam.

Nunca se está apenas a dois num quarto a dois. Uma nuvem de lembranças corre por aquelas paredes mal pintadas. Lembranças que existiram, e as que existirão. Ele bem sabe. A dor que teme sentir, mas prefere sentir o conforto do colchão, entregar-se ao momento.

Vive mais quem se limita a prever apenas os próximos cinco minutos. O futuro é grande demais, distante demais. "Nós vamos morar naquele apartamento ali", diz a voz tola cheia de medo do prédio ser derrubado no dia seguinte. Foi-se o prédio e o sonho junto com o pó.

"Você é única, incomparável". O sorriso se faz no rosto de novo. O peito já está seco, ela olha com ternura, mas com uma ternura cuidadosa, tentando não ser terna demais: "Você é tão... bom." Morde os lábios. Mas ela é a única mesmo assim.

Quando sair dali ele pensa em escrever um texto. Mesmo que nada daquilo tenha existido. Vai escrever e depois, no futuro distante, em meio ao pó, vai reler, e rir-se daquilo. Ou vai sentir vergonha de si mesmo por ter dito as coisas que disse, ou ter feito as coisas que fez. "Mas eu fiz", ele vai se consolar assim. "Que saudades eu sentirei, mas eu preciso sair daqui primeiro." Estará perdido no que sente.

Quando sair dali, ela pensa em tomar um banho, dormir, e respirar o ar da segunda-feira, da terça e da quarta-feira também. Quem sabe o ar de Sábado. O domingo é sagrado demais pra isso. "Que vontade de dormir."

Por onde seguir? Há uma bifurcação à esquerda. Mas ali fica o coração pulsante e morto.

Ela se levanta, e é como se uma obra-prima se mexesse. Sempre dizem que não tem assim tanta noção de estética, não sabe medir o que diz. Mas é a própria arte renascentista. O braço caído por sobre a fronte. O cabelo jogado pra trás, revelando sua testa firme e feminina. Seu sorriso de mulher. Agora ela é mesmo uma autêntica mulher.

O que há por trás destes olhos afinal? Uma tela de cinema? Quem é o diretor do filme? Você mesmo, pelo jeito. Afinal o que há de renascentista nesse sofrimento todo? O homem apaixonado fica obcecado tanto por si mesmo quanto pela sua obra. Mas é apenas uma mulher.

Mulher renascentista, é sim. Pele alva, branquíssima mesmo. Branca, suada e vermelha. De todos eles, talvez eu fosse o único que estivera tentando transformá-la em arte.

Veja bem que há duas saídas desse quarto. Saia daí vendo que o sol é apenas um astro incandescente que tem por objetivo de existência apenas queimar, como o é há milhões de anos. Ou saia daí pensando que as estrelas brilham para cada passo que caminhar, pensando que elas estarão iluminando o seu próprio caminho.

Ou você sairá pensando que é parte do universo, ou que o universo faz parte de você.

Ele não quer sair dali. Quer que o tempo pare.

Começa a chover. São lágrimas? Não, apenas chuva.

Como vamos sair agora? Ela não quer sair dali. quer que o tempo voe em paz.

"Mas e as horas?". Deixe as horas voarem à vontade. Não as tranque no seu calaboço de obrigações. Pobres horas, veja como soam tristes. Elas querem poder sentir a chuva que cai. Seu sorriso se abre de novo, o olho sonolento, desfalecido. Que imagem linda. Quantas dessas ela pode me proporcionar? Para o espectador do filme, apenas uma. Mas para o diretor, há inúmeros sentidos. Ela é o seu achado, a sua obra-prima, até tudo ficar seco e desgastado e ela se julgar imperfeita demais pra fazer parte desse seu espetáculo em que só você pagaria pra assistir.

Está tudo perfeito.

Quer acreditar nisso tanto quanto acha que acredita em si mesmo. O que há por trás destes olhos? Um mistério. Um mundo diferente. Pede para entrar nele, mas fica apenas à porta. "Você se perderia em meu mundo. No meu mundo apenas eu sei caminhar, e só eu sei a saída."

Mas já estava absolutamente perdido nele. Estava mais calor que o normal e precisava de ajuda para sair. A porta estava bem ali adiante. "Não sei como chegar nela." Mesmo num quarto a dois, quando nunca se está sozinho. Até de lá é difícil sair. Ele não queria sair. Ela também não. Ele queria que o tempo parasse. Ela queria que as horas voassem livres.

Chuva.

São lágrimas? Não, apenas uma chuva de verão. "Acho que já passei por aqui antes."

Assim estava mesmo, completamente perdido.

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