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Mostrando postagens com o rótulo Poemas

Tua Palavra

Palavras como fios E teus dedos costurando Um caloroso manto Para minha sombria alma. Palavras, que como pão Desta tua fome tão antiga Onde cada sílaba que canta Vira a ceia da minha calma. Palavras, como tuas mãos Que quando escreves meu nome Eu sinto O calor do teu gentil enlaço. Palavras como a brisa A brisa que te trouxe até mim No alívio das noites infernais Na doçura dos teus braços. E se ousa um dia duvidar Da força daquilo que escreve Lembra: O mundo que antes era só escuridão A vida que antes era nada Começou tudo, até amor Pela Palavra.

Liturgia dos Corpos Doentes

Conheci um dia um artista que me despiu por inteira Despiu-me com palavras Com olhares Com um toque suave Mas de tão suave que me fez incendiar Gritei teu nome como se grita por uma prece E ele, ele orou em mim Fui deusa Ele foi altar Fui esperança Ele foi templo e contemplação! E quando balançou teu aspersório Fui tua bacia de água benta Tu, lavou-me em oferenda e salvação. Diz ele para mim Escrevo, escrevo sim um poema Neste teu coração vadio e sem rumo Porque escrevo como quem sangra E te amo como quem morre. Ouço longe como do outro lado do mundo O lamento de um passarinho solitário Tenho ele preso em tua jaula Venha buscar a tua chave Através dos densos caminhos do meu bosque.

Eu Fico

Te escutei no acorde mais bonito Da canção que mais me faz chorar Quando te lembro em meus braços Sinto que enfim tinha meu lar. Tuas paredes lisas, plenas de aberturas Mas eu também estou quebrada E é nessa cama em que estivemos Que eu enfim estive amada. Pelas tuas frestas sussurra a luz suave Que te ofusca em sombra, mas a mim protege Te entrego então estes versos, não promessa Como a oração de quem te amou sem pressa. Falhei, falhei, perdão amigo Não tive como ti a mesma força Mas saiba, na memória, que é comigo Dos doces beijos de agonia me contorça.

Sopa de Indignidade: O Amargo Exílio do Mérito

Algumas pessoas tem um jeito tão belo de recontar a própria história, que eu decidi também recontar uma história de uma fugitiva que se vê como heroína. Aqui vai. Estava eu um dia em uma NAU, sério, eu realmente estive em uma NAU, não um barco, não um navio, mas uma NAU. Eu de repente virei o Maurício de Nassau, o Gigante Holandês, e saí colonizando tudo, até mesmo a minha insegurança, mesquinharia, avareza e infâmia. Porque se tem algo que eu realmente prezo nessa vida, é a minha necessidade doentia de parecer virtuoso para todo mundo que me conhece. Então aqui vai: Tua nau, tão nobre, tão tua — que sorte! Ergueu-se ilesa das marés... imaginárias. Leva contigo tuas âncoras de autoaplauso. Sopra teus ventos — mas não esperes que eu os sinta. E eu, que nem marinheiro sou,  Quase que naufrago por distração. Foi acidental, não me preparei. Como cruzar um desafeto no mercado da alma, entre pêssegos e demoras. Nada dramático - apenas inoportuno. Tuas palavras são tambores numa guerra qu...

A Brisa Incandescente de Teu Calmo Olhar de Fogo

No pálido outono da minha lembrança tu caminhas, leve, sem ferir o chão. Teus olhos azuis — dois portais de bonança — me enxergam inteiro, mesmo na contramão. Ela entra e o mundo esquece o eixo. Cada gesto, uma dança de navalhas e flores. Fala como se amasse — e fere como se fosse a própria musa do furor e dos amores. Teu riso era cítara, teus passos, harpa, e no fio da tua ausência me equilibro. Foste, e eu fiquei feito folha que farpa a si mesma num vento sem livro. Sua palavra tem perfume. Sua carícia, febre e calma. Ela me queimou com beijo e depois soprou minha alma. Tu és minha oração não rezada, minha infância não salva, minha irmã sem idade, minha estrela mais clara. Ela dizia: “vive, idiota!” E eu morria um pouco mais. Ficava olhando sua boca, como quem tenta ler sinais. Ainda me acenas nos sonhos — e, mesmo dormindo, eu sei: não há morte que te leve nem tempo que te levei. Ela foi Mas ficou em cada verso que grita, em cada vinho derramado, em cada noite infinita. E é no silên...

Cometa!

 - Você ouviu dizer no jornal que um meteoro vai rasgar o céu? - Sim, meu amor, mas não importa! Deita! Dançamos ao som do caos Fiquei rouca, fiquei louca Tatuou suas mãos em mim Em todas as partes de mim Até onde não conhecia Lá, estrondo, poeira, desespero Aqui, a trombeta do regozijo Lá, morte Aqui, sono. E então, uma mancha laranja persistia no céu A destruição era bela, fascinante, encantadora Teu calor ainda jazia A cratera do meteoro no chão me fez chorar a tarde inteira. Meteoro não, cometa!

Mercador do Teatro

És o melhor, o melhor do mundo! Disse-lhe o mestre da pintura O melhor! O melhor do mundo! Encara a obra presa à parede Uma banana e uma cadeira Tens pois, aí, a decadência em quatro estágios Engana-se quem pensa ao contrário Diz o crítico do diário É a pós modernidade em madeira Professa o douto sábio Em sua acolchoada cadeira Quem sustenta, sobre as pernas, a natureza? Uma banana e uma cadeira à parede Sublime símbolo, pura beleza! És o melhor do mundo Era o que tudo lhe dizia. Décadas depois, em uma choça aos trapos Morria. O que é que aqui vem representado? Pergunta lhe o jornalista  Arregalado à fortuna obra  Aqui tens uma banana Aqui tens uma cadeira Disse-lhe o cênico mercado.

Meu Pássaro Roubado de Mim

Meu pássaro roubado de mim Via teu reflexo no espelho do fundo da sala De lá de dentro de tua gaiola fazia sombra Teu canto soava belo, sempre soa belo (é incrível como ele sempre é estridente e belo!) Repleto das minhas vontades e dos meus desejos Cheio daquilo que quis amar e não pude Completo daquilo que quis ter e não tive Lúcido do teu próprio cárcere Existindo e pela felicidade. Vez ou outra, pela frestra da janela Um feixe de luz lhe aquecia Vez ou outra, vês um galho de árvore solto O verde das folhas Sente a brisa nas suas penas Via teu reflexo no fundo dos teus olhos O desejo pelo sol nascente A caça pelo teu ninho O teu vôo torto Tuas feridas  Teus remédios E tua sanidade numa cruz de madeira E teve aquela vez em que você decidiu Que ao invés de ser pássaro Queria ser gato E passou o dia inteiro tentando lamber a si mesmo Até sentir vergonha  Que coisa tola sentir vergonha Providência, psicomaestria Porém revolucionária E quando decidi por mim abrir tua jaula Voou e...

Domingo do Senhor

Domingo do Senhor É dia de varrer a casa. Ouvi, há muito tempo, um estrépido troante Como o som de um vaso oco estilhaçante E era mesmo um vaso a princípio muito ornado. Ou quem sabe era a forma de uma estátua O abedé de uma deusa, Euterpe, Calíope, Psiqué ou Erato. Quanto tempo que esse estrondo aconteceu? Foi descuido ou a força de um grito? Foi um tombo distraído, ou força do hábito? Ou quem sabe uma palavra mal pronunciada Titubeia pela pressa de pouco perceber. Será que ninguém notou Todos os pedaços espalhados pelo chão? Pai, mãe, filha, companheira E a carne que espeta nossos pés O sangue entrecruzando nosso rastro? Faltou coragem Faltou muita determinação Encarar o meu pedaço Num fragmento ensanguentado pelo chão. E hoje, que nem era Domingo do senhor. Hoje que era um dia qualquer... Todo dia se parece No Domingo varrendo os fragmentos.

Na Praia

Contempla a pedra una o nascimento Do suntuoso Astro que se lança Como o materno elance tua brasa Extirpa da minha vida o lamento. Beija-me os pés com tal candura A alma que imortal e majestosa Clara, tão macia e arenosa Da vida, abranda a desventura. Dança com o silvo de uma brisa Restaura-se o grão o teu domínio Incauta testemunho-lhe a misa A carícia que faz-me a imagem. Já não mais soa como o eterno toque Que na memória o gesto imortaliza Vez a vez se aparenta-se imponente A cena que comove-me o enfoque. Cavalga mar adentro a ventania Prata e prata no celeste horizonte Manto líquido, tua sabedoria Áspero, feroz limpa o Flegetonte. Olha a pedra do flamejante prenúncio Do grande Astro que o braço repousa A ocre cor que em seu leito se esconde Salva-se o mar perene de silêncio.

Aniversário

Esse som ríspido que raspa o meu trajeto  Não é a demência da alma Não é o som pesaroso de um luto repentino  É o som dos estilhaços esparramados no chão  Daquilo que sobrou do espírito menino. Sim, eu sei, hoje era pra ser de alegrias Sorrisos, gratidão e fortuna Horizonte avante, de um futuro que se abre Mas futuro já não há, não penso, não vejo  Só o pesar que com o coração coaduna. Recebe uma ligação porém, Ainda ouve aquela voz familiar  Aquele amor que é o mesmo da infância  Aqueles sons que se repetem e já nem nota. A mesma cantiga cujo final se antecipa. E cai o anjo novamente, no eterno lago A pele etérea arde na dúvida sofrida Por que, por que, por que minha vida? Não tem porque. Só tem aqui. Se atravessa a rua ou para Ou se o cometa explode o corpo celeste É porque.

A Vida é Espera

Aqui está, são R$3,74 senhor. São 7:34, está na hora de ir, senhora. Em quatro minutos, abaixem seus lápis  Volto já, até lá, página 74. Pois em nome do pai e do filho Amén  Pois é um menino ou menina? É menino! Sra. Cardoso? Sim! Sr. Cardoso? Sim! Até que a morte os separe! Embarque portão sete! Três semanas em Noronha! Pois cheguei mais cedo Às 4 Ouço o ranger e o berro da cama E lá eles estavam. Assine aqui Sra. Guedes Está bem? Sim, soluça. Doutor. Quanto tempo doutor? Doutor quanto tempo? De 4 a 7 meses. Já faz 4 dias Que angústia, que tormento Nada acontece. Acontece que aconteceu Foi um lamento Nada mais se deu. Fica a saudade. As saudades Ai que saudade de... Em nome do pai Do espírito Santo  Amén.

A Child is Born

Talvez seja o som do enferrujado Ou um rato que emite seu chiado Escombros mais escombros de história  Fragmentos de vida, de memória. Torna o animal tua origem  Séculos e séculos recôndito  Desavergonha-se, prêmio da miséria  Anda a plena luz, sem pudor. Restos, muitos restos pelo chão  De homens e mulheres e crianças  Agarram-se firmes pela mão  Sob os rastros de uma explosão. Toda a tua ciência e tua literatura Cai-lhe sobre os ombros Tua salvação, tua ruína No fim das contas, de nada serviu toda a nossa luta. Cerveja, Bill Evans e uma vontade doce de morrer.

Pedro

Antes do pôr do Sol Pedro mudou de opinião três vezes Na primeira vez defendeu o ataque às tiranías Porém apaixonou-se, casou-se e comprou uma casa. Na segunda vez defendeu que houvesse o direito de proteger sua propriedade  Mas a mulher pegou-o em flagrante na janela aos desejos pela vizinha seminua. Na terceira vez defendeu o direito ao salário mínimo universal Ainda que todo Carnaval viajasse de férias para os resorts nacionais. E ainda que Pedro mudasse de opinião por uma quarta vez, não teria mais tempo. No escuro, na quietude da alma, só se ouve a orquestra dos gafanhotos. E o mar segue sendo mar. As folhas das árvores seguem em seu ciclo de renovação. O silvo da ventania farfalha a floresta como em zombaria.

Devaneio de um Sonho

 Eu vejo a distância a morte de uma flor Primeiro ela para de crescer, numa decisão impetuosa A cor que desvanece, empalidece, esmorece. O perfume cheira a frio e a saudade. Pouco igual ao fim de um espetáculo Testemunho o longo adeus, se recolher Dá-lhe água, adubo, carinho ou amizade Ela existe mas para de viver. Na veia corre o sangue em aflição Pois mesmo queira a flor se extinguir Mais forte sinto ainda o desistir. Pra que escolho esta flor como objeto? Servir como o frescor de um novo amor? Ou o consolo expurgo desta dor? Como a vela em dia claro, sob a luz ardente Não quero que se vá, que me deixe, que termine Como pés cansados num deserto transcendente Pende a pétala no instante em que decline. E as pétalas as deixam, avassalada Uma morte por dia, a flor que emudece Mas menos que um sopro de vida: Ao cadáver de pé, uma prece: Tenta, a vida que se arrasta, arrasta ainda e segue.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

Terezinha

Dona Terezinha assistindo a novela de Asa Branca Seu Roque Santeiro, santo do falso milagre. Falava com Porcina: - Entre aí não sua boba. Bicha besta! Mas Porcina ia mesmo assim. Estrela gravada na memória. Desliga o vidoguei Apanha a bassôra Espie, espie, espie Valei-me, Deus me livre! Sua palavra transborda de fé Sob seu pilar, histórias de milhões. Terezinha tem nome Santa. Santa Terezinha. Estrela gravada lá no céu.

Declínio Pós-Guerra

As imagens eróticas no jornal. Sangue escorrendo da testa das crianças Escombros e mulheres em agonia O homem pende murcho com os olhos no vazio. Um espetáculo pornográfico Tanto quanto eu tanto quanto nós Contemplo o teu nome marcado na sepultura. Ainda que eu te veja no lado de fora do sepulcrário Você me acena e sorri com tristeza Murchos com os olhos no vazio Teu nome jaz inerte na pedra, na alma, na carne e no coração.

San Michele a Ripa

Sai da espada tua lágrima de pérola E atira-me violenta à danação eterna Esta prisão de sangue, suor e sorte. Com o tordo e larva preso em tua jaula Que ao ter a porta esgarçada e frouxa Voa em certa liberdade para a morte. No pulso, a cela em ferro e estilhaço Do cheiro ao gosto da ferrugem rompe No indulto face em frente à encruzilhada? Tuas janelas que ao Tibre se refletem Olham fundo ao abismo que os mira De uma boca dolorida e desdentada.

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.