Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens com o rótulo Matheus Vieira

A Ponte

Todas as noites em que eu sonhava, não importava o tema ou as imagens, estava presente uma ponte que flutuava bem alto lá no céu. Não era uma ponte comum, em que era vista de baixo para cima, ela realmente estava flutuando no céu, cortando toda a dimensão do horizonte até onde eu pudesse ver, de leste a oeste, e não se conseguia ver o começo, ou o fim, por mais que eu fizesse um esforço, ou caminhasse por dez dias inteiros, ou pegasse uma carona com algum estranho, essa ponte não me permitiria saber o que se encontrava em suas extremidades. Se eu sonhava que estava na minha sala de aula, lembrando das pessoas que fizeram parte da minha infância, ao sair da escola, eu notava cortando o céu azul aquela imensa ponte, em que as extremidades se perdiam em um caminho interminável. As risadas dos meus colegas indo em grupos ou em duplas para suas casas me despertavam um misto de alegria e isolamento. Quando eu sonhava que estava andando sobre a areia da praia, ouvindo o som da espuma molhando...

O Homem de Areia

Acordo tossindo, no meio da rua, engasgado com meu próprio sangue. Uma saliva vermelha escorre pela minha boca e mancha as minhas roupas, enquanto tento buscar o ar que me falta. Minha vista turva sintoniza gradualmente o mundo ao meu redor. A tela da realidade toma forma e aos poucos onde me encontro. Estou cercado por uma pequena multidão, todos eles absorvidos pelas suas tarefas do dia a dia. Um casal de idosos, indiferente ao resto do mundo, discute as contas da casa. Um homem corpulento e desengonçado procura freneticamente os resultados dos esportes da semana. As crianças correm pela casa, ignoram os meus apelos, até mesmo quando se aquietam para assistir desenhos TV. Várias moças fazendo suas unhas e comentando sobre o calor quase insuportável do dia. Um casal dança sensualmente atrás de uma árvore, aproveitando-se da pobre luz. Os senhores no bar jogam cartas e contam suas histórias como moeda de troca. Um bêbado cambaleia e parece ser o único genuinamente feliz, e o único genu...

Eu preciso ser eu mesmo em algum lugar desse mundo

Cada poema que eu escrevi, não sei dizer se são bons, mas eu escrevi. Não tive pretensões, mas eu senti que precisava escrever. Não quis fama nem nada disso, só queria escrever. Talvez uma parcela de mim desejasse o reconhecimento. O poema é uma voz, e toda voz quer ser ouvida, porque ninguém quer ser o louco que fala sozinho aos ventos. Mas já parou para ouvir um louco falar? Ele traz um incômodo porque nos projetamos, então fingimos pressa para não ouvir. Ou até fingimos mais sanidade do que o próprio louco porque não queremos dar-lhe crédito pelas coisas que diz. Eu não sei se toda voz quer ser ouvida, mas eu gostaria de ser. Eu fui pouco ouvido durante toda a minha vida, disso sim eu tenho plena convicção, entao me acostumei a dizer o que as pessoas querem ouvir, e eu queria que as pessoas dissessem pra mim aquilo que eu quero ouvir. Dizem que comunicação é uma coisa impossível, a menos que digamos palavras de ordem. Talvez algum filósofo tenha escrito isso. Cada poema que eu escre...

Aniversário

Esse som ríspido que raspa o meu trajeto  Não é a demência da alma Não é o som pesaroso de um luto repentino  É o som dos estilhaços esparramados no chão  Daquilo que sobrou do espírito menino. Sim, eu sei, hoje era pra ser de alegrias Sorrisos, gratidão e fortuna Horizonte avante, de um futuro que se abre Mas futuro já não há, não penso, não vejo  Só o pesar que com o coração coaduna. Recebe uma ligação porém, Ainda ouve aquela voz familiar  Aquele amor que é o mesmo da infância  Aqueles sons que se repetem e já nem nota. A mesma cantiga cujo final se antecipa. E cai o anjo novamente, no eterno lago A pele etérea arde na dúvida sofrida Por que, por que, por que minha vida? Não tem porque. Só tem aqui. Se atravessa a rua ou para Ou se o cometa explode o corpo celeste É porque.

A Vida é Espera

Aqui está, são R$3,74 senhor. São 7:34, está na hora de ir, senhora. Em quatro minutos, abaixem seus lápis  Volto já, até lá, página 74. Pois em nome do pai e do filho Amén  Pois é um menino ou menina? É menino! Sra. Cardoso? Sim! Sr. Cardoso? Sim! Até que a morte os separe! Embarque portão sete! Três semanas em Noronha! Pois cheguei mais cedo Às 4 Ouço o ranger e o berro da cama E lá eles estavam. Assine aqui Sra. Guedes Está bem? Sim, soluça. Doutor. Quanto tempo doutor? Doutor quanto tempo? De 4 a 7 meses. Já faz 4 dias Que angústia, que tormento Nada acontece. Acontece que aconteceu Foi um lamento Nada mais se deu. Fica a saudade. As saudades Ai que saudade de... Em nome do pai Do espírito Santo  Amén.

A Child is Born

Talvez seja o som do enferrujado Ou um rato que emite seu chiado Escombros mais escombros de história  Fragmentos de vida, de memória. Torna o animal tua origem  Séculos e séculos recôndito  Desavergonha-se, prêmio da miséria  Anda a plena luz, sem pudor. Restos, muitos restos pelo chão  De homens e mulheres e crianças  Agarram-se firmes pela mão  Sob os rastros de uma explosão. Toda a tua ciência e tua literatura Cai-lhe sobre os ombros Tua salvação, tua ruína No fim das contas, de nada serviu toda a nossa luta. Cerveja, Bill Evans e uma vontade doce de morrer.

Pedro

Antes do pôr do Sol Pedro mudou de opinião três vezes Na primeira vez defendeu o ataque às tiranías Porém apaixonou-se, casou-se e comprou uma casa. Na segunda vez defendeu que houvesse o direito de proteger sua propriedade  Mas a mulher pegou-o em flagrante na janela aos desejos pela vizinha seminua. Na terceira vez defendeu o direito ao salário mínimo universal Ainda que todo Carnaval viajasse de férias para os resorts nacionais. E ainda que Pedro mudasse de opinião por uma quarta vez, não teria mais tempo. No escuro, na quietude da alma, só se ouve a orquestra dos gafanhotos. E o mar segue sendo mar. As folhas das árvores seguem em seu ciclo de renovação. O silvo da ventania farfalha a floresta como em zombaria.

PC Siqueira

Foi extremamente triste a morte do PC Siqueira. Nem toda morte é triste. Há mortes que acontecem, e a tristeza fica na saudade, mas nos sentimos felizes por aquela pessoa ter existido. No caso do PC, eu não comentava nos vídeos dele mas sempre o assistia.  Eu sempre defendi que o PC Siqueira por causa daquele infeliz caso, ele não foi aquilo do que todos o acusavam. PC Siqueira era depressivo, e em quadros graves, quando a doença está fora de controle, o depressivo se torna autodestrutivo, inconsequente, não se permite limites. Isso em todos os aspectos: físico, social, mental, emocional, não importa. A pessoa simplesmente não se importa com mais nada. Eu acredito que naquele comentário o PC já estava tão aquém dos limites do que choca as pessoas que ele foi lá e simplesmente disse. Ele pensou "eu me odeio, minha vida é uma merda, foda-se, eu vou dizer, e foda-se" e ele disse, e aquilo trouxe toda a reviravolta para a vida dele que o colocou nessa rota de loucura e solidão. E...

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

Terezinha

Dona Terezinha assistindo a novela de Asa Branca Seu Roque Santeiro, santo do falso milagre. Falava com Porcina: - Entre aí não sua boba. Bicha besta! Mas Porcina ia mesmo assim. Estrela gravada na memória. Desliga o vidoguei Apanha a bassôra Espie, espie, espie Valei-me, Deus me livre! Sua palavra transborda de fé Sob seu pilar, histórias de milhões. Terezinha tem nome Santa. Santa Terezinha. Estrela gravada lá no céu.
Eu acordei com o som de água caindo, achei que era uma rara chuva de inverno, mas era só o som dela tomando banho. Levantei apoiando os cotovelos na cama, e olhando pela frestra da janela, apenas uma linha de luz, desorientado, não conseguia saber a hora, claridade da manhã, ou se era manhã, se fazia frio ou calor, se era hora de se levantar ou se ainda podia ficar alguns minutos a mais para relaxar o corpo da preguiça. Levantei e fui até a porta do banheiro. Tínhamos um banheiro em nosso quarto. - Amor, você viu meu isqueiro e meu cigarro? - Oi? Falei mais perto da porta - o isqueiro e o cigarro. Você viu? - Dentro do bolso? Não tá? - Ah tá - confirmei quando achei - você não trabalha hoje? - Falei enquanto caminhava para a janela. Acendi o cigarro e fumei distraído olhando para as janelas do prédio vizinho. Eu não sei porque eu ainda faço isso, fumar, assim como eu ainda não sei porque olho para a janela como se tentasse tentar na casa do vizinho com meu olhar. Morávamos em um condom...

Declínio Pós-Guerra

As imagens eróticas no jornal. Sangue escorrendo da testa das crianças Escombros e mulheres em agonia O homem pende murcho com os olhos no vazio. Um espetáculo pornográfico Tanto quanto eu tanto quanto nós Contemplo o teu nome marcado na sepultura. Ainda que eu te veja no lado de fora do sepulcrário Você me acena e sorri com tristeza Murchos com os olhos no vazio Teu nome jaz inerte na pedra, na alma, na carne e no coração.

A Educação Falhou

Um dia um aluno me disse "a educação pública é muito ruim", no que eu respondi "sinto saudades de quando a educação no Brasil era ruim, porque hoje ela é inexistente". Eu não exagero quando digo isso, que a educação falhou. Não me limito apenas à educação pública. Atuei em diversas frentes educacionais: privada, pública, voluntária, cursos livres, e em todas elas, o cenário mais ou menos se repete, com professores completamente desvalorizados. Numa sociedade que presa e almeja apenas o material como qualidade de vida, o que você ganha também determina o seu prestígio. O ganho pessoal e o mérito financeiro estão acima de valores humanos que, sejamos francos, ninguém se importa hoje em dia. Não adianta falar de respeito, amor, sócio afetividade, não adianta. Há uma espécie de máquina de moer humanidade em curso nesse mundo, e os jovens foram cooptados por ela. Deram a eles um protagonismo sem ensinar primeiro o senso de responsabilidade e a importância que isso tem pa...

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

Eurípedes

A moça de 26 anos busca a noite para ser de novo menina. O motorista de ônibus anseia pela última viagem. Salta o coração da faxineira sua canção favorita no rádio. O homem de negócios espera uma ligação importante. O professor olha, esperançoso, a letra cursiva do garoto. A enfermeira limpa com zelo, o corpo do paciente, prestes a se recuperar. A garçonete pode receber uma gorjeta. Todos , de alguma forma, porém, se encontram no caos do cruzamento central da cidade. Enquanto a felicidade não vem.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.

Passado em Cinzas

A vida é um Casino Onde a moeda é o tempo Apostas à mesa A decisão é um jogo de sorte Cada perda custa caro E ele ou ela que foram um reinado Moveram mundos e multidões Diante do último suspiro até onde a vista mira Como sentiram-se estúpidos no anoitecer. Paguem esta conta com cinzas ou sangue Limpem os pés ao sair E guardem os sapatos no baú da memória.

Torre de Marfim

Creia na força da palavra E no ato da nota creia Que para cada verso bordado Firma-se o tecido na veia. Leia o leito caudaloso  Deguste este versar Como quem costura A boca do teimoso. Pois tecidos, não trapos Esgarçam-se na pele Mal os tapam o frio E a pouca das vergonhas Enquanto versos desenrolam Transbordam sangue lá e cá  Dos corpos que caem pelo rio. Do alto de suas torres de quinquilharias finas O som de seu clamor íntimo morre pelo ar Como quem, de apelo surdo  Morre de fome no chão. Obrigado por explicar  À existência da minha miséria A miséria da minha existência.

Dopping

Eu te escrevo esta carta Enquanto em minha mente Tudo cheira a ferro Deitado em leito esplêndido Um homem sem feição  Analisa os ferimentos  Ele não mirou nos olhos Cantarolava um rock Enquanto agonizava em vida  Na descida ao litoral A ventania bagunça os cabelos Mas na memória penteadeira Manchas pretas nas digitais  Nas últimas linhas em tinta E no pensamento tarde demais.

Experiência

Quanto se nega ao coração A verdade de uma morada verde? Pouco serve o maduro fruto  Se o que se morde é sem sabor! O enquadro é farsa, sentido vão A pintura esparsa, vazia visão Quando muito tem-se tempestade O que sobra e sente é sopro Tredo abraço que outrora afaga Nessa falta é tudo o que sobeja.