Cansei de ti amor
Sai de mim, me deixa só!
Cansei da tua delicadeza
Que disfarça o perverso em pureza.
Segue o cego arrastado
Que não quer ver tudo o que vê
Pois quando vê, só vê a si mesmo
Cancela o óbvio racional
Vira moribundo passivo
E faz da própria alma um internato.
Cansei de ti amor
Que olha para o certamente impossível
E me engana que a tarefa
Com força e fé é certamente passível.
Cansei de ti por me enganar
Me faz de tolo irracional:
Eu vejo o homem morto de fome
A criança de ferida aguda
A operária muda
E o cobrador surdo
Todos felizes cantarolando
De braços dados em um jardim
Ignorando o seu fatídico
É o que eu vejo, amor estúpido!
Com tanta gente me falando ao ouvido
Sinto-me incapaz de crescer.
Parem de me falar ao ouvido!
Parem de me falar ao ouvido!
Estou cansado de estar cansado
Quero adormecer meu espírito
Enxergar a natureza
Cá, eiras e beiras quero enxergar
Purificar as feridas alheias.
Esquece de mim amor estúpido
Em mim se aloja sem pedido
De mim se apodera sem sentido
Depois se alitera com lírios e louros
Me branda em parte dividida
Arranca do peito a minha carne
Que parte com outra deixando a ferida.
Não sou poeta médico
Sou paciente!
E por tua culpa estou sempre doente
Doença imatura e egoísta
Esqueço do mundo, esqueço da vida.
De ti cansei, mas não o nego.
E vou seguindo pior que o cego
Que não vê nada, mas ouve a tudo
Ouve as notas das baladas
Do jazz triste lamentado
Do blues arrastado
Da bossa nova enterrada
Do samba parado e sincopado
Como o coração do apaixonado
Que ouve a tudo mas não vê nada.
Coração sem ritmo que não progride
E só um tom sabe tocar
Só de uma cor que pinta ao mundo
E só escreve se for amar.
Não quero mais ser só amor
Serei cérebro, tristeza e dor
Serei raiva crescendo e allegro
Apatia andante do cego
Permita-me outro senão o amor
Dê-me a raiva razão e dor.
Podia ser ao menos ingrato
Virar-me as costas sem aviso
Partir sem carta de despedida
E acordaria assim sem sentir falta
Eu tenho raiva do seu caráter
De ficar aqui me afagando
Mas amor não tem costa, nem afago, nem carta
Amor só tem a mim amor
E aquilo que vejo além dos olhos.
E entretanto o seu caráter
É traiçoeiro inocente
A mim me afaga
E a mim me afoga.
Saia daqui com este espelho
Acende a luz que se ausenta
Da raiz do cabelo ao podre artelho
A escuridão me mostra mais
Que a luz que cega minhas verdades.
E em verdade o amor contigo
É o amor que está comigo.
Vai-te embora e me deixa só
Me deixa aqui misturado ao pó.
E dali me empenharei em apagar a chama.
Rega este coração com água
Que já está seco de tanto amar.
Para que ao invés da chama forte
Nasça a árvore da razão.