Eu me lembro bem. Era mais ou
menos em agosto, do ano de 1997. Eu tinha 14, você tinha 12. Como essa época
ficou marcada em nós. Eu
me lembro bem que o professor Isac te pôs para fora da sala por causa das suas
curiosidades ousadas. A indagação infantil vira uma arma fatal aos ouvidos de
um adulto convicto e esclarecido: "Professor, mas na bíblia Jesus não
disse que o único que pode falar com Deus é ele mesmo?" "Professor,
não está errado acreditar em
Santa Maria sendo que Jesus é o único que pode falar com
Deus?" "Professor, Jesus não disse que ele era o único que pode nos
levar até Deus?"... e você não parava, cada vez mais fazia perguntas. Eu
ri, porque achei muito engraçadinha toda aquela sua curiosidade inocente. Em
todos os anos de escola que convivemos, parecia a primeira vez em que você se
interessava por algum assunto. Mas acho que eu fui a única que percebeu isso,
porque em questão de 4 ou 5 perguntas a paciência do professor se esgotou, e
você foi retirado da sala por indisciplina.
Sabe que há almas que se conectam e nunca mais se desligam umas
das outras? Se você ri, eu rio, se você chora eu choro, se você quer, eu quero em dobro. Eu sempre quis em
dobro meu amigo. E sabe que naquela hora em que você chorou pela humilhação, eu
chorei junto. Fiz pirraça e fiz de tudo para ir pra fora da sala também. Chamei
o professor de velho babão e de cabeça de ovo, porque ele tinha uma cabeça que
parecia um ovo. E ainda aqueles óculos enormes davam a ele aquela expressão
estúpida e amedrontada. Eu tinha pena dele, porque não conseguia conquistar o
respeito de ninguém com aquela convicção religiosa. E eu consegui ser expulsa
da sala, você mal poderia imaginar a minha alegria por ter dividido aquele
momento de rebeldia contigo! Saí da sala ao som dos gritos amistosos de nossos
colegas "hmmm se doeu pelo namoradinho" ou o típico (e meu favorito)
"tá namorando! tá namorando!". O que pra você era motivo de terror
por causa da sua timidez, pra mim era a razão maior de meu regojizo. Eu sempre
quis em dobro.
Eu saí e não fui até a sala da diretoria conforme seria a regra, e
achei que você estivesse lá. Fingi que passava mal e fui para o banheiro
correndo com tanta rapidez que a monitora não pode me alcançar. Subi o primeiro
lance de escadas, e depois o segundo, e já estava no pátio antigo da escola.
Fui correndo em direção a quadra e para a minha surpresa, você estava escondido
mal escondido debaixo da nossa árvore. Ah, aqueles olhos azuis. Um momento
qualquer em um texto pode ser idealizado da maneira como bem quer a autora. Eu
sou a autora, e eu te idealizo. Aqueles olhos azuis marejados, eu me perdia
neles meu amigo, me perdia com muita facilidade. O seu olhar de espanto por me
ver, eu me perderia nele para sempre:
- Você também foi expulsa?
- Fui. - sorriso
- O que você fez?
- Chamei o professor de cabeça de ovo e de velho babão.
Gargalhadas. Você riu porque achou graça, mas eu, foi mais de
alívio por te ver.
- E você não foi pra sala da dona Teca?
- Não, eu fugi.
- Eu também fugi. Não quero tomar advertência, meu pai me bate.
- O meu também.
Meu pai nunca sequer encostou a mão em mim. Mas qualquer
desculpa era válida para um momento como aquele não é?
- Eu fiz algo errado?
- Nada.
- Por que ele me colocou pra fora?
- Não sei.
- Eu estava gostando da aula.
- Eu sei.
- E agora?
- Eu não sei. - riso.
Sua cara em que tentava procurar por alguma palavra pra me
agradar. Palavras eram insuficientes meu querido. Você se lembra disso? Talvez
só hoje consiga se lembrar. O menino demora mais pra virar homem. Mas você era
um homenzinho tão sincero. Era tudo uma questão de tempo para estarmos prontos
um para o outro.
- E agora?
- Eu não sei. Acho que meus pais vão saber e meu pai vai me bater
depois.
- Você tá com medo?
- Tô. Meu pai quando bate deixa marca. Lembra? Eu te mostrei outro
dia.
Um silêncio reinou. Bateu um vento fresco. Ainda não falei do
clima daquele dia, mas era o clima do mês de agosto. Você se sentia injustiçado
quando diziam que agosto era o mês do desgosto. Sim, até isso era motivo para
se sentir perseguido, porque você nasceu em agosto. Você nasceu a
gosto dos seus pais, e trouxe muita alegria pra mim. Quisera eu ter um desgosto
assim em todos os momentos da minha vida. Eu disse vento fresco? Não, era um
vento frio, geladinho, como aqueles ventos de inverno. O tempo estava
geladinho, e você só usava a camisetinha pólo do uniforme da escola, a sua
calça bem maior que você, e o seu tênis preto, sempre o mesmo tênis preto. Você
nunca usava mais de um calçado, sempre esperava inutilizar um para trocar por
outro. Vestir-se bem nunca foi o seu forte. Mas você se vestia com sinceridade,
e isso é apaixonante. A árvore tinha as folhas ainda verdes, mas muitas já
tinham caído pelo chão, e o concreto da quadra estava repleto daquele verde. Um
monte de bolinhas, algumas formiguinhas andando pra lá e pra cá, e dando
coceirinhas onde estávamos sentados. Você tinha mania de pegar uma folha e
dobrá-la, quebrá-la em mil pedacinhos, pra depois jogar de volta no chão, como
mil estrelinhas em pó.
Depois cheirava os dedos pra sentir o aroma da folhagem, e
escolhia a próxima. Distraidamente...
- Ainda tá com medo?
- Tô sim, bem mais.
- Então segura minha mão.
E eu tomei a sua mão sem que você pudesse responder. Aquilo foi
tão íntimo. Senti que podia confiar em você, e sua mãozinha pequena e delicada,
seus dedos finos e macios, tímidos, sujos por causa das folhas, rolaram entre
os meus, e foi em questão de tempo que sua mão começou a suar. A minha também,
no mesmo momento em que eu perdia a noção dos sentidos e sentia o coração bater
mais forte.
- Tá com frio?
- Um pouco.
- Chega mais pertinho.
- Não precisa - a sua automática e inevitável negação. Você tinha
mania de negar tudo, até mesmo aquilo que mais precisava. Você precisava de
mim!
- Chega aqui vai?
- Não não, obrigado - com a risadinha tímida. Ah, a sua aflição
por estar acuado em mim era o meu maior prestígio. E foi quando a segurança
aumentou, e eu que cheguei perto de você, deitando minha cabeça no seu ombro.
Você ficou com o corpo inteiro endurecido, como se a minha alma tivesse sugado
a sua para dentro de mim. Estático, imóvel, o excesso da vergonha lhe roubou a
reação. Em cada passo eu entrava na sua trilha, mas resolvi pular de vez a sua
muralha, e te encontrar sem defesa, para que eu pudesse te proteger.
Quanto tempo tinha se passado? Cinco minutos? Dez minutos? Uma
eternidade? Há momentos em que o tempo não se mede. O tempo não foi feito para
ser medido. O tempo sequer existe, e toma ainda menos significado em situações
assim.
O diálogo que nunca existiu entre nós cessou. Se dialogávamos, era
porque as nossas almas se reconheciam, mas nunca houve conversa. Houveram
sensações. Eu senti, você sentiu, e foi quando o seu suorzinho adolescente
encantou o meu olfato. Eu dei um beijo no seu rosto, estalado, e para minha
surpresa.
- Li, obrigado por ter vindo aqui.
- Eu sabia que você estaria aqui.
E para minha surpresa, a maior lembrança de minha vida, a mais
intensa, por ter sido a primeira, a mais intensa, por ter sido a única vez em
que eu senti aquilo. Eu percebi que naquele momento, queria você comigo para
sempre. Seus olhos encontraram os meus. Ah, eu me perco nesse olhar azul e
profundo. Até onde vai e de onde vem? Eu mal consigo imaginar. Olhos nos olhos,
respiração sincronizada, batimentos cardíacos organizados, sua mão na minha,
seu pensamento no meu, sua alma na minha! Seus lábios...
Faltavam poucos centímetros apenas, poucos centímetros. Quando a
amizade avança um estágio, quando a amizade descobre o caminho mais terno e
verdadeiro... Por poucos centímetros, você se lembra? Eu me lembro. Você se
lembra do susto?
- Psiu! Ei vocês dois! Por que vocês não estão na sala? Já pra
sala, vamos! Indo pra sala agora. Eu vou chamar a dona Teca e a dona Maria!
Que engraçado! O seu olhar de espanto! Você tinha um olhar
diferente pra cada momento da sua vida. Eu sabia todos eles de cor. Você
levantou rápido e ficou gaguejando, enquanto eu ria. Foi engraçado. Foi terno.
Foi intenso. Fomos para a sala.
Terminei o dia daquela aula mais distraída do que você. Não
respondi a chamada, esqueci um caderno debaixo da carteira, não entreguei o
trabalho de geografia. E quando o sinal bateu, eu me esqueci de esperar por
meus pais na porta da escola.
Quando saímos da sala, e já era meio-dia, estava escuro, porque
parecia que ia chover. Uma garoinha fina foi começando. Eu não te esperei como
de costume. Fui correndo de propósito, porque eu queria ver se você viria atrás
de mim. E para a minha nova surpresa, você veio, no seu jeito desengonçado,
tímido e gracioso. Mas eu prossegui, sem te esperar. Ia correndo subindo a rua
da escola, indo para casa a pé, quando ouvi o grito da minha mãe. Fiz um
"ah" de surpresa, e fui ao encontro dela que já me dava bronca
"onde você ia menina? Esqueceu que eu venho te buscar todo dia?"
Esqueci mãe, esqueci completamente. Para aquele dia eu só teria lembrança para
uma única coisa, uma única pessoa.
Você não me viu, mas quando eu ia saindo no carro, e na hora em
que aquela chuvinha fina foi engrossando, eu te vi correndo e olhando para os
lados, até que você me encontrou. Eu virei o rosto e fui fingindo que
conversava alguma coisa com a minha mãe. Então você baixou os olhos e desceu em
direção ao seu ponto de ônibus, correndo da chuva. Sozinho.
Quando cheguei em casa, escrevi sobre aquele dia e guardei, porque
esperava um dia te mostrar, pra você saber o que eu senti. Você se lembra? Eu
me lembro meu amigo, e eu nunca vou esquecer.