Pular para o conteúdo principal

Quando a Luz se Apaga

Rastros de uma vida infeliz. Às vezes a lembrança vem implacável, e de todas as vezes em que estive triste de verdade (tristeza de verdade é um sentimento muito intenso) a imagem mais clara a qual aludia minha alma era a de uma luz se apagando. Todo mundo tem medo do escuro, certa professora disse. Por que será?

Quando não há imagens presentes no nosso campo de visão, automaticamente começamos a nos defrontar com as imagens do nosso cérebro, da nossa imaginação, daquilo que evitamos enquanto 'conscientes'. Temos medo do que está dentro, do que escondemos, daquilo que constantemente reprimimos.

Nas sessões com a psiquiatra ela me disse: "Se você sentiu, se você pensou, é porque ele está lá, dentro de você. Não ignore, enfrente". Pois é, enfrentar o medo do escuro, o medo de aceitar as limitações, de descer um pouco do pedestal do orgulho e assumir os erros, assumir as falhas, pedir desculpas, mesmo que não aceitas. Danem-se todas aquelas sujeitações maiores de uma idéia menor, o importante é seguir aquilo o que o nosso coração mais puro diz. A aceitação da interferência do amedrontado é a inerência à estupidez a longo prazo. Apague a luz, aceite este encontro consigo mesmo.


Quando a luz se apaga
Eu não vou
Eu paro
Estático como um cacto
Sedento por maciez
Quando a luz apaga.

Quando a luz se apaga
O café amarga
A comida azeda
Eu berro eu cego
Tateio e não encontro
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
O vento frio me afaga
Eu realizo
Eu moralizo
Eu desejo não ter visto
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
A vida vai
Eu fico
O tempo corre solto e lento
Perdendo o dia e a noite
Não nascem mais rosas
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
Acalma-se a chama
Levanta os olhos e clama
Mas não escuta a tua dama
Cada passo longe
Uma lágrima derrama
E eu perco os meus lenços
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
A juventude se perde
Perde-se o vigor
Perde-se o sabor
Perde-se a cor
Perde-se tudo
Sobra o rancor
De vir tudo de novo
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
A benção vai embora
Estaciona-me a praga
Inundam-me as perguntas
Faltam-me as respostas
Seca-me a garganta
Seca-me o coração
Morre o espírito
Morre o menino
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
Tudo o que é luz diminui
Os dias são sombrios
A noite é confortável
A noite é estável
A marcha é louvável
O urubu fala
E eu entendo
Os corvos em voos circulares
Ululam lá no céu
Quando a luz se apaga.

Quando a luz se apaga
Acaba

Quando a luz se apaga.

Acaba!
Quando a luz se apaga.

A marcha para
A para marca
Araca para
A luz que apaga.
Quando a luz se apaga
Quando mancha marca
Apara a marcha
Quando a luz acalma
Quando a luz se apaga
Não há ninguém
Quando a luz se apaga
O homem não a acende mais.

Quando a luz se apaga
Vai o menino
Fica o velho
Leigo ancião ou sábio vespertino
Sobra-se o acre excessivo
Quando a luz se apaga
Uma estrela cai e toca o sino.

Quando a luz se apaga
Uma voz sussurra
Quando a luz se apaga...

Quando a luz se apaga...

Quando a luz se apaga...

Quando a luz se apaga...

Apaga...

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Chamas de Yemanjá

Almíscara penumbra O ar que pesa em febre As sedas ardem chamas Verte-me a maré da criação. Recebo em exortação As faíscas que te explodem sob a pele  Cubram-me, estrelas cadentes. Ergo-te minha aberta taça Largo anseio a coletar Neste cristalino cálice As pérolas de deleite mar. Perfeita ondulação Com um arqueio para trás Transmuto em Eva Rosa aberta das Mil Noites Das mil insaciáveis noites! Sem medida. Deixe que caiam Que cerquem-nos as brumas Banham a alma o noturno orvalho Ouça este canto É a beleza do profano hinário. Neste sonho vivo Altivez de devoção cutânea  Rito ao lúgubre exorcismo  Governa e acata simultânea. Sorve dominada a benta água Aceita a nativa incumbência  A viva e infinita exultação. Quente e pesada Cai a noite Salto na cidade inteira Soltas rubras copas Sem medo Reflexo brilhante das estrelas Embebe o lacre dos segredos. Quente e pesada Em açoite Salta a cidade inteira Um, dois, três, quatro Brindem ao pórtico Abraçados às cortinas Rasguem o m...

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Dez Mil Dias

Certo dia foi assim Peguei o ônibus Sentei na calçada fria Esperei falarem comigo Deixei a mão suspensa, em vão E em um gole, matei minha sede Para no segundo seguinte Você não estar mais aqui.  E soube certa vez Que não estava mais aqui Às vezes Quem não está Parece nunca ter partido. Te via na luz Te via no amanhecer Te via Te vejo Na minha vontade de morrer. Tua voz que parei de ouvir Ainda soa para mim. O teu perfume de ternura Sinto em todo lugar O teu semblante de aurora Vejo-o nas pontas dos dedos. E sobreponha a  eternidade Entre o que plantou em mim E o fim do mundo E você ainda estará aqui. É assim mesmo. Porque  Ante a catástrofe  A confusão A existência O desamor e a desilusão A tristeza e o rancor As mágoas e a reclusão Três palavras Quatro sílabas A minha incapacidade humana de decifrar A dissolução da minha angústia: Eu amo você. 📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿 Tudo isso começou no dia 06 de Maio de 1998.