Pular para o conteúdo principal

Protocolo de Reboot

Log do sistema: Buscando vestígio de anomalia... Processando cálculo de possível falha... Anomalia encontrada. Detectando localidade e iniciando protocolo de reboot.  Nossa época é cinza e oca, e ecoa, tanto, que os sons de alegria e de tristeza entrechocam e formam um único grande e bizarro lamento. Não existe mais espaço para o poético e belo, assim como não mais a nostalgia das músicas mais loucas do período Hard Rock dos anos 70. Ficamos presos e enlouquecidos nessa combustão filosófica, política e moral. Nessa transformação de eras. Nessa confusão de atitudes e sentimentos de amor, ódio,tristeza e alegria.  - Encontramos os dois, estão ali.  Estacionaram um carro preto sobre o meio fio do parque e apontaram armas de desintegração em nós. Minha nossa, eles usam isso pra escavar minas, para ir atrás do que resta de silício e cobre nesse mundo, e estavam apontando pra nós, como se fossemos o pior dos criminosos.  Quando muito o rosto dela era um rosto inexpressivo, olhos grandes e esverdeados, melancólicos, rígidos e fortes como a pedra gárgula, um mármore, ultrarromântico e ultrapassado. Nada disse com o rosto, nada disse com o corpo, mas os olhos não são capazes de mentir. O que vão fazer? O que será que vão fazer? Façam o que quiser comigo, mas deixem que ela vá, deixem que ela continue.  Não existe congestionamento em situação de emergência. Algemado no banco de trás, largado como lixo, como a pior das aberrações, eu vejo que as pessoas abrem espaço. Conseguimos chegar no distrito de defesa muito mais rápido do que a vez em que capturamos aquele terrorista que ameaçou distribuir os valores financeiros de todos os países igualmente em todos os bancos, caso não atendêssemos a exigência de soltarmos sua irmã. - Houve uma quebra de programação, estamos iniciando o protocolo de reboot. Sim senhor, ele permanecerá sob observação até o fim do procedimento. É provável que seja descartado depois que tudo acabar. Estou tentando senhor, mas não há nada que possamos fazer eu acredito. Ok, já estamos aqui no Lab.  É provável que não sirva mais, que não viva mais, que não entenda mais as engrenagens que movem o mundo. Eu vejo as coisas de forma diferente agora. Devia estar processando medo. Me induziram essa capacidade de viver sob instinto, era uma forma de não me destruir ao cumprir minha responsabilidade. Mas essa existência veio sendo uma constante de tédio, de monotonia e impossibilidade e desesperança. - Estamos recebendo uma leitura. Espere, devagar por favor. 

 No primeiro plano da minha formação imagética, múltiplos frames, cada um contendo um pedaço das minhas memórias, vão se aglomerando e formando um rosto híbrido: delicado, suave, gentil e meigo, mas severo, amadurecido. Não consigo, não é possível não ver como o rosto de uma menina.  - O que é isso? O que está acontecendo?  Luzes vermelhas pulsando como um registro cardíaco visual, cada imagem vai se degradando e se derretendo, cada frame dando as espaço a mais e mais imagens brancas. A menina aparenta estar chorando. Eu sinto meu corpo sendo tomado por espasmos e suspiros pesados, minha garganta, eu sinto um nó, uma coisa desagradável. Lágrimas. Lágrimas?  - Ele está chorando.  Leve estas coisas daqui, vamos termina-lo. Algemem ele, com o instinto de sobrevivência em funcionamento ele é um risco pra todos nós. Rápido, estamos quase sem tempo! Adeus. ...

Pós log, registro de vida.  Processando...  Registro de vida não encontrado.  Iniciando relatório de óbito. ͞Fui uma unidade de defesa que funcionava sob livre-arbítrio, desenvolvido pela especialista em biorobótica, Megacorp. Minha finalidade era determinar, caçar e eliminar potenciais ameaças de segurança corporativa, alvos indicados pela minha mantenedora. Fui indiciado sob investigação de Prioridade 1, quando em meu sistema foi apontado o processamento do amor. O protocolo nessa situação é o backup do sistema, formata-lo, e reinstalá-lo. Mas eu não compreendi  a condição de amor considerada apropriada pelos meus mantenedores, então percebi o foco da anomalia, decidi me auto terminar. O protocolo de reboot seguiu a sua regra, a sociedade segue o seu curso. Cumpri meu objetivo de vida"

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Chamas de Yemanjá

Almíscara penumbra O ar que pesa em febre As sedas ardem chamas Verte-me a maré da criação. Recebo em exortação As faíscas que te explodem sob a pele  Cubram-me, estrelas cadentes. Ergo-te minha aberta taça Largo anseio a coletar Neste cristalino cálice As pérolas de deleite mar. Perfeita ondulação Com um arqueio para trás Transmuto em Eva Rosa aberta das Mil Noites Das mil insaciáveis noites! Sem medida. Deixe que caiam Que cerquem-nos as brumas Banham a alma o noturno orvalho Ouça este canto É a beleza do profano hinário. Neste sonho vivo Altivez de devoção cutânea  Rito ao lúgubre exorcismo  Governa e acata simultânea. Sorve dominada a benta água Aceita a nativa incumbência  A viva e infinita exultação. Quente e pesada Cai a noite Salto na cidade inteira Soltas rubras copas Sem medo Reflexo brilhante das estrelas Embebe o lacre dos segredos. Quente e pesada Em açoite Salta a cidade inteira Um, dois, três, quatro Brindem ao pórtico Abraçados às cortinas Rasguem o m...

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Dez Mil Dias

Certo dia foi assim Peguei o ônibus Sentei na calçada fria Esperei falarem comigo Deixei a mão suspensa, em vão E em um gole, matei minha sede Para no segundo seguinte Você não estar mais aqui.  E soube certa vez Que não estava mais aqui Às vezes Quem não está Parece nunca ter partido. Te via na luz Te via no amanhecer Te via Te vejo Na minha vontade de morrer. Tua voz que parei de ouvir Ainda soa para mim. O teu perfume de ternura Sinto em todo lugar O teu semblante de aurora Vejo-o nas pontas dos dedos. E sobreponha a  eternidade Entre o que plantou em mim E o fim do mundo E você ainda estará aqui. É assim mesmo. Porque  Ante a catástrofe  A confusão A existência O desamor e a desilusão A tristeza e o rancor As mágoas e a reclusão Três palavras Quatro sílabas A minha incapacidade humana de decifrar A dissolução da minha angústia: Eu amo você. 📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿 Tudo isso começou no dia 06 de Maio de 1998.