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Rainha

A última escrava negra do Brasil foi libertada em 2012. Você sabe o que aconteceu com ela depois?

Saiu com recomendações do senhor, dizendo:

- Você é escrava, mas é como se fosse da minha própria família. Se precisar de qualquer coisa pode vir me pedir ajuda.

Ela saiu da casa de seus senhores, sem rumo, sem saber o que fazer. Tinha sido escrava a vida inteira, então só sabia engomar roupa, botar cozidos no fogão a lenha, ajuntar as galinhas no galinheiro, pegar ovos, bater roupa na pedra, essas coisas de escrava. Andou um pouco diante da Casa Grande, e ficou hesitante, voltou para a casa dos senhores, que observavam tudo da fresta da janela do Estudo da casa.

- Meu senhor, dizia a nobre escrava, meu senhor peço ajuda.

- Pois diga velha livre, dizia o senhor, agora que é livre, te trato de igual pra igual.

- Meu senhor me disse que se eu precisasse de ajuda, podia pedir qualquer coisa.

- Pois peça velha livre, disse o senhor, que era um homem nobre e rico, porém bondoso.

- Meu senhor, quero aprender a ser rainha. Pode me ensinar o segredo de ser rainha como a senhora do senhor?

O senhor de escravos ficou um pouco confuso com o pedido, e disse:

- Mas é preta, e ex-escrava, e velha. Como vou te ensinar a ser rainha nessa altura do campeonato? Peça qualquer outra coisa vai.

A velha não mudou a cara. Olhou pro senhor, e resolvida repetiu.

- Meu senhor me disse que me ajudaria com qualquer coisa. Meu senhor, quero aprender a ser rainha. Pode me ensinar o segredo de ser rainha como a senhora do senhor?

O homem rico coçou a cabeça, com vexame, olhou pra senhora que estava do lado. A senhora era chamada de Serpente da Terra, por causa dos seus olhos cor de mel, e porque se arrastava pela casa com tanta ligeireza e silêncio que parecia uma serpente. Sempre pegava os Fortes Escravos na surpresa de algo errado, e só gritava e gritava depois. Quando resolvia, no outro dia eram só sorrisos. Ela olhou pro marido com seus olhos de serpente, na confidência muda de quem diz "deixa que eu resolvo".

- Velha livre. Vou te ensinar o segredo de ser rainha - disse a Serpente da Terra, e fez uma reverência respeitosa. A velha livre já tinha esboçado um sorriso. - Mas com uma condição - continuou a Serpente da Terra - você vai ter que trabalhar para nós por mais vinte anos.

- Eu trabalho para vocês por mais vinte anos minha senhora.

- E também não vamos te pagar nenhum único centavo - continuou a Serpente da Terra.

O marido arregalou o olho e pediu licença pra falar a sós.

- O que você está fazendo sua mulher maluca?

- Você fique quieto seu frouxo que se não fosse por mim você seria um vendedor de sapatos na feira. Não temos mais criado nem escravo, e não temos dinheiro pra pagar funcionário pra funcionar a casa. Você vai meter a mão na enxada? Então deixa que eu cuido disso.

A Serpente da Terra voltou pra falar com a velha livre, que concordou.

- Sim senhora, vou trabalhar por mais vinte anos para vocês sem receber nada em troca.

- Então estamos combinados.

E foi esse o combinado. Durante os próximos vinte anos a velha livre começou a trabalhar em tudo o que já sabia. Ia buscar água no poço, melhorou os cozidos e aprendeu os assados. Multiplicou as galinhas e ajudava com as vacas, bodes e ovelhas também. Plantou frutas e verduras, e não deixou nada faltar para o conforto dos senhores ricos que antes eram os donos da sua alforria.

Passados os vinte anos, a velha livre chegou aos senhores, um pouco mais velha, e fez a mesma pegunta:

- Meus senhores. Primeiro gostaria de agradecer por esses mais vinte anos de trabalho na sua casa. Agora como prometeram, poderiam me mostrar o segredo para eu me tornar rainha?

O homem ficou sem saber o que fazer, e disse:

- Pergunte a ela - mas sussurrou com a mulher - e agora, como você vai fazer?

- Pode deixar comigo - disse a mulher sussurrante, e virando-se para a velha livre, disse - Pois bem, vou te ensinar o segredo. Você precisa fazer tudo o que eu mandar. E se não conseguir fazer, vai ter que trabalhar para nós por mais vinde anos.

- Entendido senhora. E depois de vinte anos, a senhora me ensinará de novo o segredo para ser rainha?

- Vou sim. Então escute com atenção. Está vendo ali aquele baobá?

- Sim minha senhora.

- Pois bem, suba até o alto dele.

E a velha assim o fez. Subiu até onde pode no alto do baobá.

- Mais alto! - disse a Serpente da Terra, e a velha obedeceu. - Mais alto ainda! - gritou a Serpente da Terra, com sua voz quase desaparecendo no meio do som da ventania.

Lá do alto a velha livre podia ver tudo ao redor. Uma grande cúpula de árvores que se misturavam em cores verdes, amarelas, laranjas, roxas e rosadas. Também conseguia ver flores e os recortes dos rios. Bem ao longe ela via o mar. Conseguia escutar também o som dos pássaros, dos animais carnívros e herbívoros da mata. Ouvia também uma sinfonia experimental de sons de insetos que se misturavam ao som molhado das águas da cachoeira.

- Agora você vai se segurar apenas com a mão direita!

- Você está maluca mulher? Se fizer isso ela pode cair! - disse o marido.

- Fique quieto barriga de geleia!

Lá de baixo eles podiam ver o pontinho minúsculo em farrapos da velha livre que tentava se segurar apenas com a mão direita. Depois de ficar pendurada apenas por uma única mão, ela gritou - e agora?

- Agora solte a mão esquerda também!

- Mulher, você está fora de si! Ela vai cair e se esborrachar no chão ali naquelas pedras, e tudo o que vai sobrar dela é um monte de farrapos mortos ensanguentados.

- Cale-se seu barril de gordura!

E de longe, lá de baixo, eles viam que a velhinha ia se soltando da mão esquerda. Eles seguraram a respiração num suspiro assustado quando viram a velha livre caindo. Mas antes que chegasse ao chão, ela se pendurou com os pés num galho, deu uma pirueta e caiu em cima do baobá de novo, transformada num belo Mico Leão Dourado. O bichinho reluzia amarelo como se fossem mil sóis, e cantava com uma suave melodia de mil folhas batendo ao vento.

- Eu consegui senhora, eu consegui! Agora sou rainha! - gritou a velha, que saiu saltando de galho em galho mata adentro, para nunca mais ser vista.

Inspirado no conto Sennin.

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