Eu fui uma criança feliz, fui sim, de verdade. Eu não me lembro quando foi que me quebraram. Eu não costumava ter uma memória ruim, eu sabia o meu histórico de cor. Eu tinha uma linha do tempo muito bem clara na minha cabeça, e eu sei que sabia disso porque era comum eu contar minha história para todo mundo, em detalhes, ano a ano. Essa era a minha ideia de socialização.
Conforme a gente cresce, copiamos aquilo que mais nos influencia, e isso a gente não escolhe. As pessoas querem acreditar romanticamente que sim, porque afinal qual narcisista que não sonha com sua própria biografia belamente contada na estante? Vamos deixando de lado detalhes mundanos e cotidianos, detalhes que destruiriam o mito que criamos de nós mesmos, para substituir por versões que nosso subconsciente cria para nos proteger dos nossos próprios traumas. Eu sei que isso acontece porque se até em filmes de segunda linha isso é dito, quer dizer que não é mais novidade para ninguém que se interesse pelo assunto.
A questão é que eu fui uma criança feliz. Eu me lembro de rir, de brincar com meu irmão e meus primos, eu me lembro de ficar empolgado com brinquedos e me lembro da energia de poder sair de casa para correr aleatoriamente por competições que adulto nenhum entenderia. Eu me lembro de me divertir constantemente. Eu me lembro de ter meus desenhos animados favoritos. Quando foi que eu quebrei?
Somos como uma rocha, ou uma montanha. De erosão em erosão vamos nos tornando areia, mas quem sabe de verdade aquilo que nos faz ruir completamente? Eu deveria aqui listar tudo o que aconteceu? Queria que se resumisse em apenas uma linha. Se fosse um estupro, seria fácil, eu apenas diria: eu fui estuprado. Infelizmente eu não fui, e me desculpe, mas eu tenho o humor ácido, mesmo com coisas que pra algumas pessoas não tem graça alguma.
O que me quebrou é algo difícil, mas eu posso dizer qual foi a sensação. Como se me houvessem aprisionado dentro de um barril de latão e girado ladeira abaixo. O seu corpo vai se debatendo a cada baque na ladeira, e cada vez que há um baque, surge um novo ferimento, uns mais graves do que outros.
A vida não é fácil para ninguém, e duvido que alguém nesse mundo esteja aquém do trauma. Falar das causas da depressão passa uma sensação de um resmungo sem fim, mas não é o que estou fazendo aqui. Eu gostaria apenas de ter desenvolvido uma forma de me proteger. Isso é muito difícil quando há pessoas ao seu redor dizendo que estão ali para te proteger, mesmo sem saber exatamente do que elas querem te proteger, mesmo que elas tentem se convencer de que não precisariam me proteger delas mesmas. Dizemos coisas sem pensar quando estamos de cabeça quente, mas quando isso é consistente, acredito que seria um momento oportuno para se sentar e conversar. A mágoa consistente é o que chamamos de abuso hoje em dia. Eu ainda não sei se essa palavra deve ser usada deliberadamente para qualquer condição emocional, mas vá lá, eu não tenho um diploma de especialista.
O que me quebrou então? Os xingamentos? A humilhação? As ameaças? A perseguição? Os maus exemplos? A falta de coerência? A inconsistência moral? A inconsistência ética? A falta de respeito ao meu crescimento? A falta de respeito à nossa condição infantil? A falta de respeito à nossa condição de adolescência? A falta de liberdade de escolha? A falta de respeito à nossa condição logos, páthos, éthos e personalidade? O confronto com o nosso ego? O que nos quebrou? O que nos tornou o que somos?
Já senti vergonha de quem eu sou muitas vezes durante a vida. Já me senti uma pessoa mais ou menos, ou até mesmo uma fraude. Já senti solidão como talvez ninguém devesse sentir. Como podem dizer por aí, já vivi entre o frio e o fogo, entre a escuridão e o mofo. Hoje em dia eu me amo.
Eu fui uma criança feliz. Virei uma criança infeliz, um adolescente infeliz, um jovem solitário, um adulto deprimido. Hoje eu estou em paz. Mais coisas podem me quebrar. Mas eu talvez saiba quais estilhaços vão valer a pena juntar e quais eu vou deixar para trás.