Há quem diga que depressão é como se apegar a uma corda do passado e nunca largar, nunca deixar que a carruagem siga sem aquele ponto de referência. Quando eu vejo alguém bem sucedido, automaticamente eu vejo meus pais elogiando aquela pessoa, e é como se eu pudesse ver através dos olhos deles que, na verdade, quem eles gostariam de elogiar seriamos nós.
Hoje em dia há elogios sim, mas para mim parecem todos muito falsos, vazios, uma tentativa de compensação, de reabrir o que a vida fechou, ou seja, minhas emoções. As coisas são mais complicadas do que isso. Não é o elogio vago e pouco direcionado que vai me fazer acreditar que eles estão tentando me entender quando, logo mais tarde, há uma tentativa de me manipular, de mudar o que eu sou.
Eles são velhos, é o que todo mundo diz. Eles são velhos, eles são seus pais, eles te amam. A todo momento há uma desculpa diferente para que eu tenha que perdoar a constante tentativa de impedir de sermos quem somos. Enquanto escrevo, não falo apenas por mim, mas por meus irmãos também. Cada um de nós reage a seu modo, e isso eu não posso representar por eles, mas a forma como essa manipulação nos afeta também é diferente. Todos nós nos refugiamos, e quando estamos a tanto tempo presos em nossos próprios mundos sem que eles se perguntem o que podem ter feito de errado contra nós, ao invés de tentar nos culpar pela nossa fuga, então quer dizer que existe algo de muito errado.
E é daí talvez que eu tente gastar tanta da minha energia para não me tornar uma pessoa horrorosa e odiável, um ser humano frustrado e infeliz, que tenta vampirizar a vida dos outros.
Eu deveria sentir felicidade pelo sucesso dos meus alunos, sendo eu um professor? Eu não sei dizer. Eu tento pensar que uma vez que o ano termina, o meu trabalho está feito. Eu rejeito essa mentalidade messiânica de que o professor está aí como um salvador. Eu não tenho superpoderes, eu não sei de tudo, eu não sou deus, e não posso corresponder às necessidades de todo mundo. Mas por que então eu sinto como se todo olhar em minha direção fosse um olhar de expectativa tamanha, que só a possibilidade de falhar faz com que eu queira nem mesmo sair de casa. E quantas vezes na vida eu já recebi este olhar: você falhou professor, você não é quem eu preciso. Afinal, então, porque eu deveria salvar a vida de alguém sendo que não pude sequer salvar a minha?
Eu tenho dificuldades de sentir orgulho de outras pessoas sem que haja uma ponta de raiva, e eu sei bem de onde vem essa raiva. Essa raiva vem de falas como:
- Você é um garoto inteligente, mas não se esforça o suficiente.
- Você acha que seus olhos azuis vão ser o suficiente pra te ajudar na vida?
- Sabe quando você vai conseguir passar numa universidade pública? Nunca!
- É muito bonito que você saiba tocar um instrumento musical, mas isso tudo é pura ilusão.
- Para que você quer este livro sendo que já tem livros de geografia e matemática em casa?
- Você está aprendendo japonês? E como é que está o inglês?
Como eu posso sentir orgulho de mim mesmo se não fui ensinado a sentir que qualquer coisa que eu fizesse fosse válida de incentivo? Como eu posso saber o que é ir em busca do que eu quero sendo que a todo momento que eu achava que tinha encontrado meu caminho, eles vinham me colocar em dúvida sobre o que eu queria? Como que eu posso ter a sensação de alívio e paz sendo que até mesmo a minha raiva pessoal é motivo de culpa, porque eu preciso estar feliz o tempo todo pela simples benção de estar vivo?
Por causa disso eu sinto uma vontade muito grande de fazer coisas comigo mesmo que está além do controle de qualquer um. Eu não sinto que a minha vida é mesmo minha até o momento em que eu começo a fazer mal a mim mesmo, até o momento em que eu começo a detestar a tudo e a todos ao meu redor.
Como eu posso me sentir bem, seguro e em paz, sem rancor, sem mágoa, sendo que toda promessa que me foi feita foi quebrada logo em seguida? Sendo que toda vez que me convenceram de que eu podia confiar, eu fui apunhalado e machucado? E como eu posso não me sentir no direito de me proteger e me defender de tudo isso?
Esse mundo é uma mentira completa. Tentam nos abster da nossa capacidade de tudo: eles nos tiram o direito de pensar, de sentir, de ver e ouvir por conta própria. Eles nos tiram até mesmo o nosso direito de nos defender. Eles criminalizam o ódio, a raiva e a indignação. Eles aceitam apenas aquilo que é dócil e obediente. Aquilo que é feliz apenas pelo fato de existir, não importa a condição. Eles nos dão as migalhas e esperam que sejamos gratos por isso. Pois eu não aceito migalhas, e eu não sou grato, eu não estou grato.
Eu não tenho porque sentir gratidão por um mundo que só me machucou, o tempo todo. Como sentir paz sem existir uma compensação pra toda essa injustiça? É simples apenas maltratar alguém e seguir em frente como se nada tivesse acontecido, e ainda isso tudo ser culpa minha? Eu devo me resolver com o meu passado depois de tudo o que me foi causado? O tanto de humilhações, comparações, dúvidas, agressões físicas, verbais e sexuais, tentativas de coerção, chantagem, invasão de privacidade, total negligência e desrespeito à nossa necessidade de ter uma privacidade, total negligência à sensibilidade da vida.
Eu odeio ser assim.