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Moralismo Cirandeiro

Tenho uma aptidão para a polêmica, confesso. É uma forma de chamar a atenção para mim, eu sinto um deleite silencioso ao ver o circo pegando fogo e as pessoas perdendo o juízo. Pode ser uma defesa, porque, bem, eu não gosto de ninguém, o que é diferente de odiar. É bom deixar isso claro: o ódio é quase como o amor, porque o ódio tem uma parcela de você se importar com o que os outros pensam. Não é o meu caso, eu não odeio ninguém (aliás, estou repassando mentalmente se eu li já escrevi isso em algum lugar aqui, e se por acaso escrevi, mudei de opinião, não é ódio, é só um desgosto mesmo). Eu não gosto de ninguém porque bem, tudo me entedia com muita rapidez, e por isso às vezes eu preciso adereçar provocações ao que muita gente acredita ser importante pra sobrevivência delas.

Certa vez estávamos em uma conversa com universitários, o Matheus e eu. O assunto era um rapaz de cabelos longos e coloridos, e ele falando de suas experiências no Japão, e eu juro que ainda não conheci uma única pessoa que não tivesse ido para outro país sem que suas opiniões fossem engessadas em algum tipo de presunção, no caso dele, por exemplo, uma superioridade em relação à nossa cultura. E o Matheus faz a pergunta: "E você aprendeu a língua? Tipo, você foi lá a trabalho, estudo, diversão...?" e ele mal termina de fazer a pergunta, o rapaz responde agressivo, como se estivesse fazendo uma defesa: "é claro né caramba, como você acha que eu sou fansub?" E o Matheus vira pra mim e murmura "bem, eu não sabia, e na verdade, eu deveria saber?". Eu só ri, mas deu pra ver que meu amigo ficou aborrecido com a prepotência. A conversa continuava até que o Matheus achou o momento perfeito pra dizer aquilo que é senso comum entre nós dois: "eu não sei, estava pensando um dia desses, e cheguei à conclusão de que o idioma japonês é primitivo demais e por causa disso..." e novamente o rapaz não o deixou terminar e rebateu "que primitivo o que? E o inglês? (o Matheus é professor de inglês) com aquela coisa tosca de usar o mesmo verbo em todas as pessoas". Então tudo bem, agora estávamos em uma guerra de defesas culturais em que, por alguma razão, ele acredita que o Matheus defende o idioma inglês como se fosse sua propriedade. E a partir desse ponto, inevitavelmente, eu já estava extremamente entediado.

O rapaz parece sofrer de algum delírio de narcisismo porque não consegue manter uma conversa sem manter suas opiniões como o centro das atenções, e precisa dominar as narrativas para fazer valer a falácia de que o último a falar é o vencedor. Bem, não necessariamente, o vencedor é só quem se importa com isso, e honestamente, não nos importamos. Mas o que meu amigo estava tentando dizer e não conseguiu concluir é que um idioma que é baseado em uma simbologia conhecida por uma pequena parcela das pessoas do planeta fará com que, inevitavelmente, aquela cultura se isole do restante do mundo que, querendo ou não, tenta nos convencer de que é globalizado. Em outras palavras, caso os japoneses sentissem a necessidade de se comunicar com o restante do mundo, acabariam forçados a sempre aprender o idioma de outro país e ter sempre a iniciativa diplomática quando tivesse a intenção de se comunicar com o restante do mundo. Não que isso seja um problema, pois o mesmo acontece aqui no Brasil. Somos um país ilhado no meio de um continente repleto de latinos de origem hispânica, e embora sejamos a maior população, somos a única que tem como idioma oficial o português, enquanto que todas as outras falam espanhol. Isso daria espaço pra uma conversa interessante sobre a importância do bilinguismo, ou das fronteiras geopolíticas, ou do imperialismo cultural e até onde isso é verdadeiro, ou ainda relevante hoje em dia.

Mas voltando ao Japão. Sempre achei esse povo um tanto curioso. Quem vê de fora, a princípio, fica encantado com o que salta aos olhos. Primeiro ficamos com a impressão de que é um país com altíssimo nível tecnológico, organização social e limpeza. E se você se deixa levar por este canto da sereia, vai até acreditar de que se trata de uma nação superior em todos os aspectos humanos. Felizmente o canto da sereia não me engana.

Sim, o Japão é uma nação com altíssimo nível tecnológico e só um arrogante diria o contrário, mas está longe de ser a única. Existe uma cultura do desperdício no país em que muito do que se produz é para a circulação do mercado e, na maioria das vezes, não tem uma utilidade a longo prazo. Tecnologia não é apenas eletrônica. Tecnologia envolve biologia, agronomia, engenharia civil, engenharia de trânsito, farmacêutica, virologia, etc, etc. E em muitos desses quesitos há países até com expressão econômica menor que o Japão que despontam.

Organização social nem sempre é ter tudo em seu devido lugar. Isso pode ser apenas um lugar limpinho, tão limpo a ponto de ser absolutamente sem vida, e é como eu vejo o Japão. É um país totalmente parnasiano, para inglês ver, apenas para impressionar o turista, mas que se recusa a resolver questões absolutamente cruciais para a convivência e civilidade. Eles são a epítome do conservadorismo, vivendo sob a égide tradicionalista que se choca com o avanço natural da liberdade comportamental. Por um lado temos famílias com rigidez pautadas em conceitos como a honra e o respeito, e por outro lado temos jovens que não fazem ideia de como se relacionar sem apelar para comportamentos tóxicos e autodestrutivos, o que conduziu o país ao índice alarmante de alcoolismo, tabagismo e uso de drogas recreativas. A solução da nação é jogar isso tudo para debaixo do tapete, especialmente quando tem visitantes de fora. Ah, mas e o Brasil? Bem, o que tem o Brasil? É preciso falar do Brasil? O foco da conversa é o Japão, mas você jogar luz nos tão conhecidos problemas do Brasil vai fazer com que o Japão não tenha seus problemas? Ou os problemas do Brasil tornaria qualquer outro país, no caso, o Japão, como uma nação perfeita?

Acredito que o objetivo principal deste desabafo é apenas deixar clara a minha visão de que em se tratando de nação, não existe nenhum local perfeito. O Brasil tem níveis muito altos de corrupção institucional (política, polícia, exército, etc) e de violência social. Mas eu quero que alguém me indique qual país deste mundo não vive estes mesmo problemas? Você não ter alguém que roube a mão armada o seu celular no ponto de ônibus não torna seu lugar pior do que um lugar em que você se autodestrói porque não tem a aprovação familiar para suas decisões. O x da questão é essa defesa cultural como se os problemas de um tornasse os problemas do outro passíveis de aceitação. Não tornam. A fala do Alexandre Garcia de que bastasse trocar o povo japonês pelo brasileiro para que, em três anos, o nosso país se solucionasse, não se sustenta. Estruturalmente, muito provavelmente, mas a solução terminaria aí. Essa visão é puramente materialista, e se fossemos partir para o campo da moralidade social, Alexandre Garcia está longe de ser algum tipo de representante nesse quesito. Quando você se alia ao pior que o país tem a oferecer apenas por causa de privilégios individuais, você perde absolutamente qualquer crédito para opinar sobre qualquer coisa. Se você abre a boca para reclamar é unicamente porque vê seus privilégios sendo ameaçados. Isso é conversa pra boi dormir.

Já o nosso personagem do texto, o jovem de cabelos longos e coloridos, por causa da necessidade de ser o centro das atenções, acabou deixando passar  a chance de dar espaço para um interessante debate sobre as camadas ocultas que cada sociedade tem.

E isso me leva ao que hoje li na internet, num artigo sobre como funciona o teclado de computador japonês e como é possível escrever kanjis, sendo que um falante fluente de japonês precisa saber em média 2000 kanjis (esse número varia de opinião pra opinião). Era uma curiosidade antiga, e finalmente consegui entender. Um leitor do artigo fez o seguinte comentário: 

"eu sempre achei que a tradição é um atraso pra humanidade". 

Outro usuário não foi tão narcisista quanto o jovem de cabelos longos e coloridos, e apenas perguntou 

"mas por que a tradição japonesa atrasa a humanidade?", no que o primeiro respondeu: 

"isso não se restringe apenas ao japonês. Veja a língua francesa por exemplo, que eu acho uma das línguas mais burras do mundo. Praticamente todas as palavras tem sílabas mudas no final, então porque eles nos obrigam a escrever a palavra inteira? Por causa da tradição, por causa da preservação de algo que não é mais utilizado? Isso não faz o menor sentido. E se pensarmos na religião, a coisa fica ainda mais grave. Você vê judeus e palestinos jogando bombas uns nos outros porque eles não conseguem se decidir o que é correto, usar barba longa ou usar um chapéu ridículo (palavras dele). E aí perdemos a chance de coexistir e discutir questões mais urgentes como o reflorestamento, formas de resfriamento do planeta, a cura e tratamento de doenças degenerativas."

Veja o que acontece quando você permite que uma pessoa flua com seu pensamento sem que você a silencie com um certo autoritarismo moral. Podemos ser brindados com um pensamento brilhante como este. Concordo absolutamente com esta opinião, e acredito que é ela que deveria ser difundida, mas estamos preocupados demais com a preservação da tradição e entramos em debates ridículos como apropriação cultural, gordofobia, e outras infantilidades filosóficas que só afligem a quem não entende a evolução natural das coisas.

O autoritarismo moral existe até mesmo nas pessoas mais aparentemente descoladas. Já conheci muita gente que se diz amoral, mas se você apertar este parafuso moral apenas um pouquinho, você vai ver que o moralismo transborda, e que logo mais surgirá o julgamento, que é a espada autoritária de todo moralista. Essa espada será brandida em voz alta ou num silêncio mortificante e confuso. E é por isso, exatamente por isso que eu fico tão mas tão entediado de conversar com as pessoas, e porque eu não consigo gostar de ninguém, porque é extremamente difícil adentrar uma conversa que não acabe em ressentimentos por conta de um apego a tradições pífias.

Mas tá bom vai Matheus, era uma festa, e é por isso que ninguém te convida!

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