Na Rua Oliveira
Não há nada a evocar
Mãe! - gritava eu
Oi - gritava ela
Cadê meu tênis de brincar?
Vê debaixo da cama
Vê na lavanderia
Vê lá no quintal
Não estava em nenhum lugar
Nunca esteve
Nunca houve tênis
Ou talvez não sirva lembrar
Tudo o que eu mais amava
Jamais pode existir
Recordação imposta
Difusa e enlatada
Recordação do nada
Cortinas de linho
Tapete de algodão
Terreno baldio
O pau e bola na mão
Terreno baldio
Como as lembranças
Do que se acabou pela metade
Correram por aí dizendo
Diretas Diretas Diretas
De retas e caminhos que jamais passaram por aqui
Mas bajulamos o abandono e o esquecimento
O seu fulano (todos eles eram) que sorria sem a parte da perna
Tudo aqui parecia feito pela metade
Seu Cirilo não tem perna
Seu Fábio perdeu o braço na máquina
O Alemão que batia na mulher
A gente só ria
Não existe raciocínio na tragédia
Aqui nunca chegou mensagem, história, ciência ou explicação
Mas todo biênio é eleição
Aqui tudo é conclusão
No mês de outubro Dona Maria e seus dez cachorros
No mês de outubro
Dona Maria distribuía doces de Cosme e Damião
Todo ano parecia eternidade
Toda eternidade de uma outra vida
Tudo era tão repleto de espaço e de vazio
Tudo era tão ermo e confortável
Que só nós chegávamos aqui
Agora todo mundo chega
Junto com dor e saudade
E bastante indiferença
Me lembro de tudo
Como quem não lembra de nada
E nunca consegui subir em árvore
Nunca tive amigo que não fosse emprestado
Tive memória que não era minha
Vontade que não era minha
Vida que nunca foi minha
Rua Oliveira mais reduto de passagem do que rua
E eu que passei e aqui continuo
Era tão cedo que tínhamos que deixar de ser menino
Teve menino que deixou de ser menino mesmo
Esse os meninos deixavam pra trás
A japonesa vizinha
Nunca me deu bola
Mas eu nunca tive ódio
Não foi aqui que me ensinaram a odiar
Não foi aqui que foi plantado o remorso
Foi no berço
No meio da sala
E no meio do terço
A gente ia pra igreja para namorar
Ninguém namorava comigo
Então eu namorava sozinho
Evocação de lembrança que carrego até hoje
Gente que me fez confuso
E a Madre Pérola
que se foi com seus cabelos cor de sol
Que nunca mais veio me visitar.