Senti muito receio quando vi que a Apple TV está para anunciar o lançamento da série Fundação de Isac Asimov. Não é coerente que uma empresa que atua com base no trabalho de exploração e quase escravidão se atreva a produzir um projeto com a obra de Isac Asimov, que muito provavelmente condenaria as práticas de negócios da Apple. É incoerente, pra não dizer hipócrita.
Sempre fico extremamente incomodado com a insistência das emissoras de produzirem séries contando a história de clássicos da literatura, porque isso dá mais endosso para a preguiça de ler. Os livros provavelmente serão comprados para serem deixados como peça decorativa ou souvenirs, sem nunca serem abertos. É presunção, sei, mas conheço quem faz isso.
Fundação foi a série que me ajudou a quebrar para sempre meu preconceito com a ficção científica. Quando comecei a ler de verdade, aos 17 anos, era muito seletivo, pois só lia os clássicos, e no mais, os clássicos da literatura brasileira. Só aos 20 anos comecei a abrir um pouco mais a cabeça, especialmente depois de Kafka, e dei uma chance para a literatura mundial. Ganhei um livro da Fundação, o primeiro da série, no meu aniversário de 21 anos, mas ele ficou parado na instante, porque eu não gostava de ficção científica. Até que aos 24 anos resolvi dar uma chance, e a experiência foi tão intensa pra mim que antes que eu completasse 25 anos, já havia lido os outros dois livros da trilogia, e as duas sequências, Limites da Fundação e Fundação e Terra.
A série Fundação é para mim uma história sobre o desejo de podermos conviver em harmonia como semelhantes. Não há descrições físicas sobre cor de pele e não há preferência sobre gêneros, porque nessa história, a humanidade já ultrapassou essas barreiras que nos diferenciavam há muito tempo. Não existe exploração ou miséria, e não há um desejo pulsante por dominação e poder. O que existe é a confirmação de se as previsões do gênio Hari Seldon estariam corretas, e como e quando elas aconteceriam. Existe a preocupação por salvaguardar a Fundação e o incentivo à proteger aquilo que a humanidade tem de mais precioso, que é o conhecimento.
Fundação é uma história sobre a política, mas não a política como a vemos hoje, repleta de ódio e mentiras. É uma história sobre a política elegante, quando homens que tem ideias diferentes conseguem entrar num debate inteligente sem se deixar seduzir pela vontade animalesca de dizimar o adversário.
Isso acontece com o maior vilão da história, o Mulo. As pessoas tentam negociar com ele, e não eliminá-lo. A última opção só ocorre quando percebem que não há alternativa, que não há a menor possibilidade de se negociar com uma força que só se move pela vontade de destruir tudo o que vê pela frente. E essa sede por destruição nem mesmo o próprio Mulo é capaz de explicar, evidente o quanto Asimov despreza a pulsão por guerras.
E percebe-se também que Asimov tinha uma fé muito grande na capacidade criativa quase infinita do ser humano. É possível sentir o seu amor e admiração pela sua espécie, e o quanto ele acredita que nós temos um potencial enorme para podermos dar certo se decidirmos nos reconhecer como congêneres ao invés de inimigos. Um homem que dedicou sua vida inteira à busca pelo conhecimento e pela ciência.
A busca pelo conhecimento só faz sentido se for para nos tornar pessoas melhores. Tornar-nos pessoas melhores está acima de qualquer luta pessoal. Se a sua luta existe apenas para causar discórdia, então essa luta não deve existir. Se a sua luta traz mais prejuízos do que benefícios, você precisa repensar as suas escolhas.
Nesse mundo não importa como você pensa, e sim como você age. Estamos presos nesse delírio coletivo porque nossas ações não refletem a maneira como pensamos, e desta forma, tudo torna-se artificial.
Fundação é uma história sobre a verdade em ser humano, e que tudo tem um fim.