A quem serve a ciência? A quem ela serviu durante todos esses anos? Ela esteve presente na sociedade como uma instituição de conhecimento a serviço das necessidades gerais da população mundial? Ela esteve a serviço do enriquecimento de grandes corporações? O quanto de ciência merecem as pessoas dependendo da sua classe social?
O espantoso para mim, em 2020, não foi o motor anticientífico, nem o negacionismo, conduzida pela condução sensacionalista do jornalismo brasileiro, uma prostituição da integridade informativa em troca de views, audiência e publicidade. A população mais pobre, essa massa generalizada e completamente excluída do direito de identidade, de individualidade, uma vez que é definida massa, é essa aglutinação forçada e imposta pelos porta-vozes do saber, esteve sempre aí como objeto de laboratório, e sempre foi excluída do debate científico.
A bem da verdade, o cientificismo brasileiro foi tomado pelo corporativismo, pelo autoritarismo e pelo elitismo. Em certo momento pareceu que a ciência era uma sociedade paralela, um membro que funcionava de forma autônoma, e alheio ao restante do mundo. É com muita relutância que existe um espaço para o popular, e quando houve, mais aparenta ser uma fria coleta de dados para propaganda política do que realmente cuidado humano.
As universidades eram o espaço de um seleto grupo que pouco pareciam se importar com sua própria seletividade. Havia clamores para a popularização e democratização do conhecimento, mas não deixavam de ser clamores.
Em 2020, especialmente as universidades, passaram a ser massacradas pelo ressentimento causado por essa exclusão. Investimentos pararam, pesquisas inteiras tiveram que ser abandonadas ou migradas para o estrangeiro. Bolsas de estudo foram encerradas, e finalmente vimos a ciência vindo em direção às camadas populares. Hoje os clamores vem em ventos contrários: vemos cientistas em desespero implorando para que a população lhes dêem atenção, lhes ouçam suas ideias e suas pesquisas, vemos pessoas falando de museus queimados e de perdas irreparáveis de material científico, para uma população que sequer entende ainda a importância disso. Os cientistas imploram "estão acabando com a ciência!".
Durante os anos passados da internet pessoas bem intencionadas (Leon e Nilce, por exemplo) diziam que os cientistas deveriam apresentar suas pesquisas e ideias na internet, em redes de streaming, de vídeos, como o YouTube por exemplo. Estes espaços eram vistos com desdém, com desapreço, e o cientista que se prestava a aparecer e simplificar o complexo, era desprestigiado (vide Pirulla, por exemplo). Sempre vemos uma tentativa de menosprezar quem entra pela porta mais fácil de acesso ao conhecimento, um reducionismo do YouTube, do TED Talks, dos Podcasts, etc. Houve durante anos o desprezo pela busca de conhecimento na internet em detrimento do livro físico, embora estes livros fossem de difícil acesso, seja pela baixa quantidade disponível, seja pelos altos preços das publicações. Canais que tentam abordar o pensamento científico tem seus vídeos derrubados ou restringidos por causa de direitos autorais. Então a quem pertence o conhecimento? O armazenamento de artigos e teses nos espaços online da universidade eram burocráticos, complicados, de difícil acessibilidade. Era mais fácil abrir uma conta do Instagram do que fazer um download de um paper na USP.
Com o advento da internet, há anos pede-se que as aulas possam, ao menos, serem transmitidas ou gravadas, e hospedadas online, para o acesso de pessoas que não tem universidades próxima das suas casas. Durante décadas e décadas o espaço do conhecimento serviu apenas para a manutenção de interesses individualistas, cujos efeitos não tinham impacto direto na percepção das pessoas que nunca sequer visitaram um laboratório. Não havia ciência nas favelas, nas periferias, nos lugares que mais precisavam dessa ciência. Não havia ciência nem mesmo nos corredores dos condomínios da classe média do boleto bancário.
Cientistas e ciência tornaram-se uma forma de entidade, uma instituição paralela, quase religiosa, quase fundamentalista, com as suas próprias regras. A arrogância científica foi o que a derrubou. A arrogância científica não lhes permitiu perceber que esse campo não deveria jamais estar alheio às necessidades diretas das pessoas. E agora aqui chegamos, a um ambiente em que pessoas ressentidas dessa exclusão estão todos os dias trabalhando para destruir a ciência.
É irônico ver o quanto as populações mais pobres e miseráveis sempre tem em suas mãos o destino dos mais privilegiados, porém sem ter a consciência do quão pouco eles podem tirar proveito disso.
A ciência é tão importante quanto o é o acesso a ela. Antes de se discutir a ciência, é preciso discutir o quanto a democratização desse campo também é necessário. É preciso olhar para toda a atitude que levou a ciência a servir quase que exclusivamente como área de manutenção de um sistema de segregação, uma ciência que tem cara, cor e classe social. Ou então lamentar pela quimera que a tomou de assalto.