Pular para o conteúdo principal

Um de Isabelle La Fleur

Isso é um caso trágico de vida inconsequente que resultou na minha mudança de cidade. Regado à insônia, vinho (bebida dos loucos pretensiosos), vodca, cigarros e a droga de uma recordação.


Ah Letícia, por que me deixou?

O seu olhar me olhava de um pra sempre que me deixava estática, segura. Amigas para sempre! Por que foi embora, hein? Hein? Seu cheiro. Tenho saudades do seu cheiro, aquele seu cheiro me lembrava depois de amanhã, que ninguém tem coragem. Eu olhando essa cidade toda amena me lembra você. Um homem cego apoiado em sua vara foi chegando e sentou ao meu lado, de barba e tudo, com a calça jeans amarela batida. Tocou-me a perna na perna.

- Escuta mocinha? - como sabe que sou mulher só me pegando na mão?
Não saberia dizer de olhos fechados se era a mão da Letícia ou do Rodrigo. Ele nem se conforma, mas amantes são assim mesmo Rodrigo. Não se contenta, se desespera. Olha-me com calmo, olhos cínicos, mentirosos, mas por dentro está em estado de guerra civil, desordenada sem líder. Uma completa anarquia sentimental. Devia dar a ele uma casa de espelhos. Amantes são assim mesmo meu bem. Acontecem acontecendo, sem aviso, premeditações. É aquela calcinha fofa, favorita que se acha na liquidação do Brás. Comparada à que está usando o coração pulsa com sangue novo. É um renascimento. Rebirth of a woman!  Vão-se enterrando assim no coração da gente, sem pedir, tentando achar um cantinho aqui ou ali. Quando vi, já estava usando a calcinha nova! Tão mais justa. Delineada parecia bumbum de photoshop, me sentia mais mulher, levantando a calcinha pra ajeitar olhando, reolhando, girando os olhos como em passarela. Ah não! Dessas não. Parece que a cara foi pintada com um sorriso publicitário de valor inestimável. Prefiro as calcinhas do Brás, justas e baratas. Um achado!

- Ei mocinha? - sacudiu-me. Cora Isabelle. Não enxerga o homem que te chama? Ele não. É assim mesmo, os olhos causam a cegueira dos ouvidos, e a boca, ai a boca, de todo o resto do corpo.

- Me avisa quando vier o que vai pra Praça da República sim? - sim. Letícia que saudades suas. Sim, que saudades. Até a sujeira da Praça da República me lembra você. O Centro inteiro é você. Lembra quando foi atacada pelo mouro debaixo do viaduto do Chá? A prefeitura pressionando a cabeça de todo mundo que passa ali embaixo. De manhã e de noite, em cima, o terno municipal secando ao sol, debaixo eles catam as migalhas entre cuspes e o cheiro seco de mijo. Uma lasquinha daquele muro daria uma pesquisa antropológica antropofágica inteira! Um achado! Mas um pedacinho de Letícia é como encontrar a cidade de Tróia. Atlântida, perdida sob o mar, ninguém nunca viu, mas acredita! Eu acredito. Um pedacinho do seu cabelo liso como cortina do teatro Municipal. Que espetáculo me oferecerá quando se abrir da próxima vez? Você é mais espetacular que o Centro inteiro. Que Barão do café que nada! Letícia é a Baronesa. Foi-se. 

- Ai minha filha, eu te avisei!

- Me desculpa -falei com irritação desajeitada - estava distraída.

- Tente ser cega que nem eu! Cá eu nessa necessidade. Devia se apaixonar depois que eu pegasse o ônibus. 

- O amor não tem itinerário senhor. Meu coração é uma Avenida sem fim - disse eu com a mão sobre o peito.

- E o meu é hipertenso e de uma arritmia sem fim, com bolhas na circulação sanguínea! Mal bate por mim. Não vê que tenho que ir no médico? Olha minha vara como treme na mão!

- E eu que nem tenho cura, nem vara, nem nada - Deus me daria a cura dessa dor. Mas da mesma forma como não conheci nenhum médico não conheci a Deus. É o médico hetero.

Letícia é o coveiro do meu coração. Logo enterrará o seu defunto. Como é possível que doa tanto! Pior deve ser ficar debaixo daquela laje de mármore, tadinha dela. Debaixo da minha coberta era tão quente. Pior para o mouro lá no Chá. Eles tomam chá gelado. Seu teto é o céu. Antes fosse o meu, mas agora nem teto e nem chão eu tenho. De todos nós só sobrou a coberta. Essa sim, se dobrada direitinho e amaciada com o Confort perfume das Camélias vai durar para sempre. Daqui a 200 anos alguém se aqueceria. Ai se ele falasse. Contaria as histórias mais gostosas de ouvir. De tirar o sono. 

Ai Letícia, se ao menos eu pudesse falar. 

Postagens mais visitadas deste blog

PC Siqueira

Foi extremamente triste a morte do PC Siqueira. Nem toda morte é triste. Há mortes que acontecem, e a tristeza fica na saudade, mas nos sentimos felizes por aquela pessoa ter existido. No caso do PC, eu não comentava nos vídeos dele mas sempre o assistia.  Eu sempre defendi que o PC Siqueira por causa daquele infeliz caso, ele não foi aquilo do que todos o acusavam. PC Siqueira era depressivo, e em quadros graves, quando a doença está fora de controle, o depressivo se torna autodestrutivo, inconsequente, não se permite limites. Isso em todos os aspectos: físico, social, mental, emocional, não importa. A pessoa simplesmente não se importa com mais nada. Eu acredito que naquele comentário o PC já estava tão aquém dos limites do que choca as pessoas que ele foi lá e simplesmente disse. Ele pensou "eu me odeio, minha vida é uma merda, foda-se, eu vou dizer, e foda-se" e ele disse, e aquilo trouxe toda a reviravolta para a vida dele que o colocou nessa rota de loucura e solidão. E...

Ciência da Humanidade

Peço desculpas ao rapaz da IBM que estava lendo o livro de Richard Dawkins, Deus: Um Delírio, e que foi rapidamente atacado por mim, por falta de coragem de encarar que existem realidades diferentes da minha. A matemática sempre me fascinou. Não só a matemática, mas tudo o que a usa como ferramenta, os números, a filosofia, a física, a biologia, a química, a engenharia, a economia, as ciências da informação, as ciências dos softwares, as linguagens de programação, a música, a pintura, a astronomia, a poesia, a eletricidade, tudo o que se originou da harmonia dos números, tudo isso pra mim é arte. Se existe algo que já me incomoda faz muito tempo nos sistemas educacionais do Brasil é essa distinção cada vez mais forte entre Ciências Humanas e Ciências Exatas. Eu ouço essa dissociação como o som de uma facada no meu peito, isso realmente me dói e me incomoda. Para mim tudo é ciência humana, até mesmo a matemática. Eu sempre me lembro da frase de Darcy Ribeiro que disse certa vez...

Devaneio de um Sonho

 Eu vejo a distância a morte de uma flor Primeiro ela para de crescer, numa decisão impetuosa A cor que desvanece, empalidece, esmorece. O perfume cheira a frio e a saudade. Pouco igual ao fim de um espetáculo Testemunho o longo adeus, se recolher Dá-lhe água, adubo, carinho ou amizade Ela existe mas para de viver. Na veia corre o sangue em aflição Pois mesmo queira a flor se extinguir Mais forte sinto ainda o desistir. Pra que escolho esta flor como objeto? Servir como o frescor de um novo amor? Ou o consolo expurgo desta dor? Como a vela em dia claro, sob a luz ardente Não quero que se vá, que me deixe, que termine Como pés cansados num deserto transcendente Pende a pétala no instante em que decline. E as pétalas as deixam, avassalada Uma morte por dia, a flor que emudece Mas menos que um sopro de vida: Ao cadáver de pé, uma prece: Tenta, a vida que se arrasta, arrasta ainda e segue.