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Uma Bolsa

Duas jovens universitárias caminhavam pela alameda quando uma delas avistou um morador de rua que andava cambaleante, praguejando para o nada.
- Depressa, deixa eu esconder minha carteira – disse a primeira.
- Para que? – enviesou a segunda.
- Oras, não está vendo ali o bêbado? Ele pode querer nos roubar.
- Pode querer nos roubar? – fez a segunda jovem, em um tom de pergunta retórica.
- É claro oras, eu não confio nesses bêbados de rua.
- Eu não confio nesses sóbrios de rua mas isso não é motivo pra eu andar com medo.
- É porque você nunca foi roubada por um deles.
- Aquele ali já te roubou alguma vez?
- Claro que não né! Mas nunca se sabe, é bom não dar confiança demais.
- Mas ele sequer parou aqui perto. O homem está lá longe, nem dando bola pra gente.
- Que seja, vamos só passar rápido.
- Já estamos passando, mas não vejo razão pra pressa, estamos adiantadas.
- É que eu quero passar rápido por aquele homem.
- Ele está andando à nossa frente, nem está ligando pra nós, mas você está com medo dele e mesmo assim ainda quer passar por ele?
- Ai, você me entendeu!
- Fica calma, não vai acontecer nada. Não precisa ter medo.
- Não dá pra não ter medo, nessa cidade... – e terminou a frase. O restante não era necessário preencher. Isso ficava a cargo dos tablóides jornalísticos que se ocupavam diariamente de retratar a tragédia da vida moderna.
- Estou com a sensação de que ele está indo pro mesmo lugar que nós.
- Interessante... – sorriu a segunda jovem.
- Interessante? Um bêbado de rua indo pro cinema? Com quem ele se encontraria lá. – debochou a primeira.
- Oras, o cinema é público.
- Duvido que ele tenha dinheiro pra pagar.
- Quem sabe arranjou uns trocados pedindo esmola.
A primeira jovem bufou com desdém, e continuou: - Mesmo que ele tenha dinheiro pra entrada, ninguém vai deixar ele entrar assim.
- Bêbado?
- É, que horror.
- Eu já assisti um filme bêbada, não entendi nada. Você também já ficou bêbada.
- É, mas é diferente!
- Não vejo diferença de coisa com coisa.
- Eu não fico bêbada na rua.
A segunda jovem gargalhou com ironia, como se recordando de uma cena recente: - Olha, se a gente voltar lá no MASP ainda pode ver a poça de vômito que você deixou lá.
- Eca, que nojo! Não precisa ser nojenta assim.
- Mas a poça de vomito era sua, e eu não estou sentindo nojo disso, pelo contrário, estou é achando graça.
- Mesmo assim, ele é um bêbado sujo e eu sou uma menina limpa.
- E com um lugar pra morar.
- Ah, lá vem você com moralismo. Isso é coisa de velho.
- Eu não acho. Mas e aí, já perdeu o medo? – disse a segunda jovem ironizando ainda mais, vendo que a amiga não largava a bolsa e apertava o bolso interno do casaco com apreensão.
- Não até a gente se livrar daquele homem.
- Mas ele não está nos seguindo. Nós é que estamos.
- Vamos dar a volta?
A segunda jovem deu um suspiro demonstrando impaciência pela intolerância absurda da primeira, e concordou dar a volta para cessar de uma vez com aquele solóquio aburguesado. Deram a volta e seguiram pela rua paralela àquela, sem mencionar novamente o homem bêbado, que naquele momento estaria anuviado na mente da primeira jovem, distraída com as lojas de perfume. O pequeno silêncio de diálogo foi quebrado pela segunda jovem, ainda que houvesse as buzinas da cidade:
- Deixa eu perguntar uma coisa. O que você tem aí que tanto tem medo de perder?
- Ah, meus trocados, meu celular, hmm, meu estojo de maquiagem, minha carteirinha da facu, meus documentos, que mais... ah, tem esse anel que o Rô me deu. Mais do que tudo, eu não me perdoaria se perdesse isso. Foi tá lindo.
- Se você não quer perder o anel, por que não coloca no dedo?
- Porque eu ainda não tenho certeza...
- Hum. – fez a segunda jovem enfatizando ainda mais a sua ironia que era sempre despercebida pela primeira. E por que você carrega tantas coisas na bolsa?
- Porque eu sou mulher oras!
- Eu também sou mulher e só estou carregando meu dinheiro e meus documentos.
- Mas tem que se prevenir. Ei, peraí, você não tem celular?
- Tenho, mas deixei em casa hoje. Não quero que interrompam nosso passeio. Quando sair do cinema eu vou embora. E minha mãe já sabe que eu to com você, qualquer coisa ela te liga. Já ficam me ligando do trabalho a semana inteira e...
- Ai, peraí, tem gente me ligando. – e a primeira jovem tirou o celular da bolsa olhando desconfiadamente ao redor, num impulso de quem faz algo proibido ou indevido, o que na verdade era apenas um mpeto automático de se certificar que ninguém o tomaria da sua mão.
A segunda jovem continuou caminhando com um resquício de insulto por ter sido interrompida pela súbita ligação, mas procurou compreender ser um viés do acaso, e não havia necessidade para se incomodar tanto. Continuou caminhando prestando atenção nas pupilas dilatadas e no riso sem cor da sua amiga, imaginando quem poderia ser. Parou pra prestar atenção no tempo nublado, que tanto nos faz sentir solitários, mesmo caminhando ao lado de uma amiga, num passeio de entretenimento tão trivial quanto o cinema.
- Quem era?
- Ai, o Rô. Ele me ligou perguntando se eu gostei do anel. Ele deixou na janela do meu quarto enquanto eu dormia. Não é romântico? Eu não sei ainda se vou namorar com ele. Até que é bonito, mas ainda não sei sabe...
- Então, como eu ia dizendo, eu não gosto quando ficam me ligando no meu momento de lazer. Já me ligam a semana inteira por causa do trabalho. Hoje to a fim de relaxar.
- Ai credo, você nem tá me escutando sua grossa!
- Claro que estou, o Rodrigo te ligou, perguntou se você gostou do anel, e agora você não sabe se namora com ele ou não. Espero que isso tenha acalmado o seu medo.
- Ah, o moço já foi embora, não tem porque ter medo. – respondeu com tom de insultada por ter seus sentimentos censurados.
- Eu acho que você tem motivos pra ter medo. Sua bolsa ainda está aí.
- Mas o bêbado não. E eu estava falando do Rô. Nem to mais me lembrando do bêbado. Ai, você às vezes é tão... – e por sua sorte, sua amiga interrompeu o discurso. A sorte surge por não ter um adjetivo conveniente para complementar o seu insulto. O discurso falha, mas as atitudes sobram e pouco se explicam do comportamento universitário moderno.
- Bem, olha ali, desviamos um pouco o caminho, mas chegamos.
- Nossa, nem percebi.
Então a primeira moça teve uma surpresa confusa, pois na porta do cinema a esperava Rodrigo e seu amigo, Hebbert. Ficou com um entusiasmo um tanto apavorado, ruborizada pela surpresa, afinal não tinha combinado com nenhum deles. Ainda assim, apressou o passo se aproximando dos dois, abraçou Rodrigo com uma sensação de frio na barriga, deixando a bolsa cair, e se esquecendo de todo o seu trajeto anterior.
Sua amiga meneou a cabeça com uma graça conveniente, cumprimentou a Hebbert, entrando no cinema e puxando conversa sobre o agradável clima nublado paulistano.

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