Vou
te dizer sinceramente, até porque aqui não tenho risco de me comprometer, ontem
foi um dia difícil pra caramba. Dia de trabalho, todo dia de trabalho é
difícil. Ficar repetindo a mesma reclamação todo dia, isso é redundância de
espírito. Piora até, a situação, me dizem. Não importa na verdade, se as coisas
acontecem assim, e eu chego em casa e fico pensando é porque não to sabendo
separar minha vida pessoal da profissional. Todo emprego começa com um sonho,
normalmente de consumo. Troquei meu sonho por desejos pequenos, desejos de meia
hora. A tentativa de grandeza é calada com a porrada diária, isso é duro pra
caramba. Vou te dizer que tem horas, não to aguentando mais. O desrespeito
coletivo pra tudo o que era correto, não é mais. Nosso lado correto é pura
imaginação, é pura fantasia da nossa cabeça, parece às vezes. É só discurso. A
gente acha que está tudo bem, mas quando vai ver, isso aqui está tudo uma
merda. Ninguém respeita mais o farol vermelho no trânsito.
Cheguei
em casa, bati os pés no capacho, deus sabe porquê, impecável, começar o meu
final de dia diferente, então tratei de jogar a pasta do trabalho em qualquer
canto e o paletó em qualquer outro. Entrei de sapatos, estava com raiva de que
alguém fosse me dizer alguma coisa, e era só abrir a boca.
Mal
permiti que minha casa me recebesse direito, ignorei a TV, a correspondência,
um monte de contas a pagar, me deu preguiça pra organizar as ideias do que eu
faria primeiro, ignorei o banheiro, fui direto pra cozinha e fiz um chá. Minha
mulher acharia estranho, eu sempre nego chá. A verdade é que nunca tenho
paciência de responder quando to pensando em outras coisas. Fui fazer o meu chá
de camomila.
Botei
um pouco d’água na caçarola e fiquei olhando, contei cada molécula de segundo,
senti o tempo de verdade, pela primeira vez, faz tempo. Até me permiti deixar
um ventinho que veio da janela me bagunçar o cabelo. Pro fundo era a nossa
piscina. O tempo ia fechar, to sentindo aquela brisa lânguida, melancólica.
Tipo de palavra que um homem centrado não usaria. A água começou a ferver
enquanto eu depositava cada recordação da minha vida em uma bolhinha que
estourava. Casa grande, carro novo, moderno, aquele clichê capitalista do homem
bem sucedido, afundado na merda até o pescoço com um monte de dívidas, mas bem
sucedido, todo mundo de fora estava vendo. Homem feliz não dá suspiro pesado,
respira leve.
Despejei
na caneca e de propósito deixei que o vapor me esquentasse o rosto, não liguei
pro calor do dia, pro mormaço que anunciava uma chuva das brabas. Vai ser o
caos na cidade hoje, vai ser o caos pra todo mundo chegar em casa, ainda bem
que cheguei cedo. Vai ser o caos, isso me fez sentir alívio, uma certa alegria
vingativa.
Peguei
o chá e fui tomar no quarto, que é proibido, sentei bem no puff do lado da TV,
e não me importei mesmo se o vapor pudesse danificar o aparelho. Dali eu fiquei
observando o gabinete do banheiro, tão retilínio e bem projetado, impecável e
seguro. Desfoquei o olhar na distância curta de onde eu estava e da entrada do
meu banheiro, imaginando o que poderia acontecer da minha vida agora. To
infeliz, robótico, teleguiado. O clichê do homem moderno insatisfeito. Quem
sabe eu devesse deixar o emprego, procurar algo novo. Mas todo mundo aqui em
casa depende de mim, e quando eu digo todo mundo na verdade quero dizer só
minha esposa, meus dois pássaros, meu cão e meu gato. Além do mais eu não sei
fazer outra coisa, não consigo ver saída. Tenho medo de deixar certas coisas de
lado, pra trás. Acho melhor parar de pensar nisso, to voltando a ficar tenso,
me recomendaram não pensar em nada. Ouvi dizer, lembrei naquela hora, do
budismo, que os monges tentam não pensar em nada pra alcançar a paz espiritual,
acho que tinha lido em algum lugar, mas foi aí que a coisa aconteceu.
Existem
coisas que acontecem só nas histórias das outras pessoas, e às vezes nem mesmo
testemunhadas por quem conta, fazendo parecer que a vida não é mesmo de
verdade, que a gente não tem o prazer de ser espectador de grandes coisas,
ainda mais quando entramos na rotina. E por mais boba que a coisa se pareça,
sempre tem um problema maior do que ele realmente é, por causa das expressões
de super impressionados, além dos excessos que algumas pessoas fazem para que
tudo em suas vidas pareça extraordinário e maravilhoso, quando é só uma rotina
moderna dessa merda de vida. É a mesma repetição, todas as épocas. Mas aconteceu
de verdade quando o meu gabinete do banheiro simplesmente se despregou da
parede e caiu no chão. Caiu no chão assim naturalmente, como fruto de um
trabalho mau feito. Caiu e fez um tremendo barulho porque tudo o que estava
dentro bateu contra a porta, ouvi ruídos de coisas quebrando, e de uma
infinitude de embalagens plásticas se chocando umas contra as outras.
Minha
primeira reação foi unicamente de raiva. Gritei tão furioso, trabalho de merda
e a gente ainda paga, mas no caminho de ver o estrago me senti diferente,
comecei a pensar de verdade. O gabinete do banheiro sempre foi tão indiferente
para mim, só me servia para pegar toalhas de 3 em 3 dias, e para pegar
sabonetes a cada duas semanas, ou menos, mas hoje não, tomou uma importância
simbólica naquela hora. Por que eu dava importância de querer tudo simplesmente
no lugar? Por que as coisas não teriam um lugar novo depois de um tempo?
Gargalhei frenéticamente e voltei para o meu quarto. Que momento mais surreal.
Era como presenciar um terremoto e comover a todos depois com um evento
natural. Uma ideia me ocorreu, uma ideia fantástica, um novo ritual dessa
religião nojenta sem Deus, sem objetivo, dessa religião escrota e repulsiva do
consumo, cheio de rituais diferentes. Eu criei meu próprio ritual de salvação
dessa mentira toda.
Abri
a porta do closet e comecei pelas minhas camisas do trabalho. Rasguei-as, uma a
uma, apreciando lentamente o som de seu tecido sendo descolado e dividido em
dois, três, ou quantas partes fossem necessárias para saciar meu tesão. Depois
fui para os mais caros, as de seda, as de linho, e outros tecidos que eu só sei
quando minha esposa elogiava, e fiz tudinho em pedaços. Tive uma ideia
brilhante então, juntei todos os trapos e joguei na privada, apertei a válvula
e mantive segurada, até que a pobre não aguentou e entupiu, em seguida
despejando toda a água pelo piso do banheiro. A sensação de prazer foi repleta,
senti-me como o homem que descobre o fogo, e segurei até que pudesse sentir um
tremendo orgasmo.
Peguei
minha xícara de chá e joguei na TV de 52. Liguei e vi que ainda funcionava.
Como um Hércules levantei e fui até à sacada, atirei na piscina. Eu sei que
isso não é de se desejar, mas eu desejei assim mesmo, ter visto o Titanic
afundar teria me dado bem menos satisfação.
Voltei
para o quarto, com o carpete devidamente ensopado, e derrubei o colchão no chão,
subi nos estrados e comecei a pisoteá-los, sem me importar com a dor ou com
nada. Meu pé direito se cortou, uma farpa rasgou o lado do meu pé e eu senti
aquela dor lancinante, aquela dor maravilhosa e sublime, e aproveitei para
manchar todos os lençóis com o sangue. Peguei todos os vestidos mais delicados
da minha mulher e levei até a cozinha, não sem antes, no caminho, derrubar
todos os vasos de plantas no chão, fazendo questão de quebrá-los e
estilhaçá-los. Uma voz distante na consciência me dizia que eu ia me arrepender
de tudo isso, que eu iria para o inferno, que aquilo era errado, mas eu queria
mais. Como um viciado em coca, que no fundo ele sabe que está se
auto-destruindo, mas essa mão demoníaca do vício nos empurra com tanta força,
eu não conseguia parar.
Desci
as escadas mijando em todo o tapete, escorreguei em meu próprio mijo que me
ardeu a ferida do pé, tropecei e caí de costas no chão, senti uma outra dor
lancinante, e esperava sentir, porque lancinante é uma palavra que eu sempre
quis usar. Minha cabeça fez um corte, limpei com as mãos e passei nas paredes,
criando um rastro disforme. Sequei o sangue com os vestidos e joguei-os todos
no chão, arrastando tudo com os pés.
Peguei
um abajur de canto e comecei a arrebentar tudo o que via pela frente, TV,
aparelhos de DVD e Blu-Ray, joguei meu estéreo contra a parede que se abriu
imediatamente. Quando eu vi o buraco que havia ficado na parede eu caí no chão
e rolei feito criança. Mas parei: meus álbuns de fotografia me causaram uma
tentação tão grande, imagino que tenha sido assim que os ladrões da Jules Rimet
tenham se sentido. Não abri, dei uma pancada na porta com o abajur que
despedaçou o vidro. Peguei todos imediatamente e corri para a área de serviços.
Lá peguei álcool e uma caixa de fósforos. Joguei metade dos palitos num balde
de limpeza junto com as fotografias, banhadas no álcool, e queimei-as, uma a
uma. Comecei a cantarolar Fire do Hendrix, ajoelhei no chão enquanto aquele
poder divino emanava de minhas mãos, eu era um deus, sei lá, um demônio talvez,
eu era o messias libertando os oprimidos desses fariseus malditos, que jogam
mentiras diárias de merda na nossa cabeça. Voltei pra pegar os vestidos da
minha mulher e atirei tudo no balde, deixei lá queimando, sentindo aquela
fumaça me envolver, aquele cheiro me envolver. Queimando as bruxas, as
feiticeiras, queimando os hereges da vida natural, simples. Queimem pecadores,
queimem, padeçam no verdadeiro inferno!
Peguei
o balde e o atirei em chamas em cima do sofá. O sofá, me custou muito caro,
meio ano de trabalho, um semestre inteiro de vida cristã para pagar um maldito
sofá. Agora eu me vingava dele, eu ria, ria como um vilão maligno. Eu estava
conquistando meu império.
Corri
até a cozinha e não parei enquanto não destruí até o último jogo de xícaras.
Afinal, para quem tantas xícaras? Centenas delas para apenas duas pessoas e
alguns animais. Assustado com todo o pandemônio que e estava criando, o Rustler
começou a correr e latir como um cão de verdade.
Saí
de casa e vi de relance o quanto pegava fogo na minha sala, fiquei na varanda
de entrada quando começou a chover. Eu ria prazerosamente, estava louco, tinha
perdido a cabeça, e estava maravilhado com a minha loucura. Voltei e me vi
escrito nas paredes das cavernas, me vi sentado diante de homens memoráveis que
começavam a imaginar o futuro de todas as formas, menos daquela que um dia
tinha pensado e em que eu estava merdamente vivendo. Gritei, como um homem que
atinge o mais sublime gozo, gritei como um homem que atesta sua animalidade, eu
estou vivo, eu estou aqui, vivo meus irmãos do passado, eu estou vivo. Me
atirei no chão e comecei a rolar pela grama, me sujando todo de lama e
esmagando os pequenos animais. Comecei a cavar no chão de terra, arranquei toda
a grama e comecei a mastigá-la, levando à boca fosse galho, farpa ou minhoca,
tudo eu mastigava e cuspia. Meu cão me observava debaixo do parapeito da porta,
espantado, em transe. Houve uma comunicação e eu o dominava com comandos
visuais e corporais. Era mais homem do que nunca!
Mas
foi quando eu vi, meu carro tamanho família, meu Tucson, meu maldito Tucson!
Levantei e comecei a gritar, você! Você é o meu senhorio, o que me escraviza!
Você é o chefe de toda esta quadrilha! Corri em direção ao quintal e peguei na
sala das ferramentas uma picareta. Seus dias de senhor dos homens estão
acabados! Tinha escutado esta fala num filme recente em que todos riam por
acaso.
Ergui
a picareta e me lembrei dos meus antepassados índios. Alguém ergueu um tacape
sobre alguém, que gemia ou tremia de medo diante da morte iminente. Uma
tempestade ou algo parecido, uma ventania intensa, um era o deus da vitória, o
outro era o símbolo da vergonha, e futuramente um novo deus da vingança. Meu
carro e eu. Mas não havia olhar de piedade do miserável, ele me desafiava, me
encarava com frieza, como se eu não tivesse coragem.
Neste
momento o portão da garagem se abria. Gritei como um louco e desferi o primeiro
golpe fatal sobre o parabrisa. Minha esposa e sua colega de trabalho só tiveram
tempo de parar o carro e olharem boquiabertas. Quando a fêmea se atrai pelo
macho, no momento em que demonstra sua força. O segundo golpe foi sobre o capô,
o desgraçado não aguentou e começou e relinchar de dor ao disparar o alarme.
Nos olhos dos faróis, nos pneus, vidros, abri as portas e arruinei com os
bancos, arranquei-os fora com uma força descomunal, em seguida arranquei uma
das portas e golpeei o painel, uma, duas, dez vezes, dezenas de vezes que não
pude contar. Abri o capô destruído e golpeei o motor com tanta fúria que
começou a despejar fluídos de todas as suas partes. Estava morto. A vitória era
minha.
Ergui
a picareta do chão e soltei um urro de vitória. Em resposta o céu me enviou um
trovão. Urrei novamente e mais uma trovoada, até que minha voz se sobressaísse.
Meu ritual estava pleno, completo.
Me
atirei exausto quando minha esposa veio até mim gritando em choque, você está
louco?
Estou
homem. De novo. Ri sem sentido, chorei de libertação.