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O Quarto Escuro

Rua do Nascimento, número 1985.

Rua dos nascidos, dos resolvidos, rua da esperança talvez. Como daria pra saber sendo que nunca saí daqui? Sou um morimbundo constante, sinto às vezes. O que é morimbundo? O estado de expectativa pré-morte, é o que sinto, e como estou sempre aguardando de quatro feito animal, isso não parece tão errado de afirmar.

A vida inteira, sinto, passei aqui dentro, neste quarto, neste endereço tão simplório, e já faz algum tempo que não vejo a luz. Lembro que a princípio tudo era iluminado, então me guio pelas parcas lembranças de como era aqui dentro. Eu lembro que vivia no berço, a sensação de mobilidade era tão pequena, mas o conforto e sabor pela vida eram tão grandes, e a primeira memória que tenho é a de meu pai me carregando para tomar banho. Um sentimento de segurança e proteção tomavam conta de mim, quando aquelas mãos calejadas, porém carinhosas, carregavam meu pequeno corpo e me jogavam para ser banhado na pequena bacia com água morna. A sensação incrível da limpeza, da renovação, do ressurgimento, e pela expressão incrédula, aquele sorriso de fascínio, dava-se para entender o tamanho da felicidade que ele poderia sentir de me ter em suas mãos. O que nos foge do alcance nos dói, talvez por isso não me lembre mais do que um grande sorriso triste.

A fase dos aprendizados foi tornando tudo mais complicado, quando passei a perceber que as coisas pudessem ter um nome apenas, e graças a isso, o mundo jamais estaria sujeito ao que eu gostaria que estivesse, mas ele seria visto da mesma forma por todos eles. Senti, neste momento, que minha visão ia se apagando de leve, e apesar da luz, era pouca, e as coisas faziam-me doer os olhos de tanto que os forcei para entender as suas formas.

Mas as formas eram claras da minha cama, com esses braços de madeira prolongados pra evitar que eu caísse ao chão durante a vigília. Na outra extremidade um sofá de couro sintético marrom, pouco rasgado nas extremidades pelo uso. Uma TV Sharp de madeira, com o seu tubo acinzentado cuja programação eu pouco compreendia. Uma poltrona logo ao lado, e na parede direita, havia uma pequena mesa com um jogo de xícaras acima. Havia pão com manteira, cuzcuz, um bule que fumegava, deixando o ambiente com um leve cheiro de café. Era tudo muito confortável e agradável aos olhos.

Caminhar foi um peso. Sinônimo de liberdade, mas entre quatro paredes, percebi que estava sempre trancado, tornou-se um mote para a angústia. Não adiantava, todas as portas fechadas, não havia janelas, ou eu sequer sabia o que era uma.

Não reparei de repente que cortinas negras pendiam presas do teto, e sim, havia janelas, mas estavam todas tão fortemente cerradas. Mas algo brincava com a minha percepção: estas cortinas não estavam aqui, ou eu nunca as tinha visto antes? Pois lembro bem da textura branca das paredes. Lembro-me de estar pensando nisso sentado no meio do cômodo, e com todas as forças do mundo tentando me lembrar, de olhos fechados, as cores das paredes de meu quarto. Eram de um azul claro leve, ou de um salmão, quase alaranjado. Essa imagem me trazia conforto, paz, tranquilidade. E os sons eram... os sons. Como eram os sons? Nunca ouvi som algum, e sequer sabia o que significa esta palavra: som. Nem música, algo que também fora impresso em minha mente, mas eu jamais a havia escutado, eu falava de sons. Bati as mãos no assoalho, e nada, apenas sentia os nós de meus dedos fechados contra o piso frio, e percebi pela primeira vez que sentia frio. As extremidades do corpo gelavam, e traziam um grande desconforto para as demais partes, fazendo-me ter pequenos espamos, pequenos tremores, quando sentia algo gelado me subindo pela espinha.

Enfim abri os olhos, mas nava vi, pois tudo estava escuro. Será que havia mesmo fechado os olhos? Onde estão as cortinas, o sofá, a TV, a poltrona, a mesa? Espera, não tinha poltrona, pelo que me lembre, e tateando aqui, sinto que estou sentado em uma. Achei que estivesse sentado no chão, pois ainda sinto frio nas minhas pernas, sinto frio nas minhas costas. Passei então a desconhecer tudo o que sabia antes, e entendi que tinha medo. Entendi que talvez aquilo tudo não estivesse certo, e que eu deveria ser levado adiante, havia algo lá fora. Eu estava plenamente convencido de que havia algo lá fora. Não, não vou me conformar em ficar aqui somente sentado nesta poltrona. 

Soltei meus braços para relaxar, mas eles caíram vacilantes e reparei que era na verdade uma cadeira, de vime, desfiada. Achei que fosse uma poltrona mas não era, era apenas uma cadeira, então contentei-me apenas em descansar as costas, mas minhas costas passaram direto, e senti o gelado de um piso sem revestimento, até notar que não havia cadeira alguma. O que havia eram objetos pontiagudos indistinguíveis pela escuridão. Eu precisava sair daqui.

Tateando no chão, fui engatinhando, relembrando do meu primeiro aprendizado da vida, de como deveria me movimentar, e já não lembrava o nome das coisas, nem as formas, esta escuridão havia tomado tanto conta dos arredores que sequer sabia mais onde estava. Não sabia sequer se estava escuro, ou se ainda estava de braços fechados.

Um estampido se fez em minha cabeça quando notei que esbarrei em algo, e objetos me caíam, se quebrando em diversos cacos de vidro. Minhas mãos errantes e meus joelhos despercebidos sangraram quando passei por cima dos vestígios, eu senti o cheiro, senti o gosto amargo do sangue escorrendo pelo corpo. Dor, isso era dor, algo que não estava de certa forma habituado. Com a dor veio a lágrima, e com a lágrima, veio o sufoco, e com o sufoco, veio o desespero. Eu senti que chorava, que gritava, estava com medo.

Levantei-me, mas já estava de pé a algum tempo, então de onde havia retirado este sangue, que não parava de escorrer? Tontura, náusea, falta de forças, respirar era um tormento, até me jogar no chão. Mas eu já estava no chão, já havia muito tempo.

Sinto que tem algo a mais lá fora, mas seria tarde demais? No meu leito, meu corpo pesado jazia, e mesmo que eu quisesse levantar, a vontade da mente está presa a essa estupida forma física, e mesmo que eu acredite que possa voar, meu corpo não me obedecerá. Este eterno embate. As coisas físicas são o limite do impossível.

***

Rua do Nascimento, número 1985, onde foi encontrado o corpo deste rapaz que morreu de uma forma tão estúpida.

Mas o pobre diabo que pareceu tatear em círculos por todo este quarto escuro, deveria estar em tamanho desespero, que não percebeu este interruptor aqui do lado da porta de saída, que iluminaria todos os seus caminhos. Uma pena.

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