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Crônicas do Não Saber: 2


No último Sábado a minha namorada esteve aqui com o filho, um menino ainda na primeira infância. Todos aqui parecem ter gostado do garoto, inclusive meus pais. Quando ele chega aqui eu tenho a sensação de que a casa funciona em razão da presença dele, como se todos os cômodos e móveis se dispusessem para o bem da presença dele. Meus pais, cada um a seu modo, ficam animadíssimos. Minha mãe não pouca comentários de ternura com sua voz chorosa de mãe que tem o coração derretido. Meu pai não consegue esconder por trás da usual expressão dura de nordestino trabalhador aquele sorriso de felicidade e paz por causa do menino. Eu suspeito que brote este sentimento neles por causa de uma necessidade biológica de herança genética, e por nenhum dos três filhos, meus irmãos e eu, termos ainda a menor pretensão de oferecer-lhes netos, eles calam essa angústia. Temos uma geração diferente da deles. Se fosse em outra época eles nos cobrariam diariamente tal como um cobrador de dívidas não oficial bate de porta em porta para saber quando iremos pagar os débitos do mercadinho da esquina. Mas no crescente dos anos, diante de tantos protestos mimados e irritadiços da nossa parte "não quero ter filhos", "não quero me casar", "pretendo primeiro investir em mim", essas declarações do coletivo egoísta do meu tempo, então eles preferem reter-se ao silêncio desesperado do que nos vencer pelo cansaço do convencimento. E para fim, somos filhos de dois nordestinos teimosos, e aprendemos por teimosia dura também a seguir o caminho oposto do que nos dizem. Vamos por deboche mesmo, quando nos dizem para não cair no buraco, nós caímos de propósito, para nos machucar, e nos machucando sentimos aquele orgulho destemido de não nos terem ordenado a nada, a dor foi causada pela minha própria escolha, o epíteto da liberdade.

Quando o menino esteve aqui neste Sábado, quase que imediatamente já arrumaram pra ele um balde com brinquedos velhos meus. Eu mal tinha cumprimentado minha namorada, e ouvi um "oi" gritado de costas, porque o menino já estava absorvido pela magia da minha infância. Queria eu ser nostálgico, mas não consigo. Ele estava ali diante de um monte de bonecos de plástico empoeirados, a maioria deles quebrados. Olhei aquilo tudo e senti um pouco de vergonha. Eu fui criado pela sala de casa, pelos livros doutrinadores da escola e pela televisão, esta a minha mais presente companhia. Eu estava à mercê de homens com boa formação sobre o que atinge e dialoga mais com a minha solidão infantil, quais são as imagens que seduzem mais a minha imaginação, e o que se esperava de mim como cidadão: ter amigos, fazer parte da turma, ser considerado o centro do social, ser visto e notado, ser colocado como o centro das atenções. E por teimosia, ao longo dos anos, eu decidi não ser nada disso, era mais fácil, era mais cômodo me reter em mim mesmo, e fugir de toda essa responsabilidade ditada pela minha melhor companhia, a TV, do que mudar toda a minha natureza. Por muitos anos eu me desculpei a ela, à TV. Ao que parece, meus pais e a TV andavam de mãos dadas: minha mãe era a mulher dos negócios, então sabia o qual das minhas roupas. Meu pai já era o homem das boas relações sociais, então ditava meu comportamento.
Diante daquela pilha de brinquedos velhos e quebrados eu vi também um pouco da imagem de uma infância estilhaçada e confusa. Tentei enxergar alguma conexão entre aqueles brinquedos e eu, e sinto como se houvesse um grande abismo ao que eu sou hoje e o que era da minha infância. Parte daqueles brinquedos eram uma cópia muito mal feita do que a vida esperava de mim: nada daquilo parecia vir de uma loja oficial. O boneco dos Power Rangers não vinham da estante de uma loja de shopping, mas sim de uma barraca de feira vendido a um preço descaradamente mais barato. Os bonecos de plástico coloridos eram pequenas estatuetas imóveis e que em muito diferiam dos incríveis bonecos multi articulados que se vendiam nos principais mercados e lojas. Minha família era pobre, então a minha infância, e aqueles brinquedos, eram um reflexo da minha posição social. Para mim era muito claro: a vida da TV não era feita para mim, e a minha infância não seria jamais uma cópia dela. Eu penso quantas crianças vivem a esta margem e qual o número de possibilidades existentes? Pois a TV nos mostra apenas uma: "seja assim!", e as crianças carregam essa responsabilidade emocional adiante, para mais tarde, apontar-nos o nosso problema: veja como está o mundo, como ele é violento, sujo, ruim, economicamente fraudulento e desastroso, e a culpa é sua, é toda sua! Eu não disse para você como você deveria ser desde pequeno? Eu não disse? Você não foi, você não se esforçou pra isso, por isso a culpa do mundo é toda sua! Pois bem, agora você não é mais uma criança, agora você é um adulto, então estes problemas que você causou, eu vou dizer o que fazer: "pense assim!"
Eu me pergunto o que seria de nós se a nossa amiga televisão nos tivesse dito a verdade sobre quem nós realmente somos.

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