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Milagre da Semana

A cultura de um povo é refletida pelas suas diversas formas de se manifestar. E é aceitável que sempre seremos ridículos aos olhos do futuro. Ridículo de uma forma que será impossível escapar da chacota. Como alguém em sã consciência jogaria defuntos na única fonte de água existente na cidade?

Mas o assunto agora é outro. Um menino magro, tão magro, que suas roupas pareciam sacos de batata sobre seu corpo, provavelmente uma roupa que lhe servia, sem se dar ao luxo de escolher, olhava fascinado, do lado de fora da grade que cercava a casa de culto, as pessoas suas longas túnicas, encapuzadas, num cântico bizarro em notas dissonantes. Era extremamente proibido um não-fiel bisbilhotar o culto, sua mãe vivia lhe dizendo que as pessoas que se vestiam bem o faziam porque tinham almas podres para esconder. A guerra entre pobres e ricos já durava a muitos anos, mas a curiosidade era muito maior do que a condição, e por isso ele estava ali.

Homens cantavam na tonalidade do cântico, mantinham o baixo pedal, seguindo adiante com a base aterrorizante, enquanto as mulheres mantinham suas vozes em notas uma quinta diminuta, e uma terça menor, às vezes uma quinta aumentada, numa variação harmônica capaz de causar arrepios na alma. As árvores ao redor, o crepúsculo (a celebração era sempre nesse horário) e o assobio dos ventos pareciam ser programados para sempre dar essa mesma atmosfera aterrorizante.

O menino do lado de fora observava no círculo formado por pessoas de altura diferentes, possivelmente até crianças.

- Irmãos, erguei suas oferendas. - o menino engolia seco, por mais terrível que fosse, ele nunca conseguia se acostumar ao horror do que estaria por vir.

Todos eles ergueram placas retangulares que cabiam na palma da mão, com uma tela luminosa na frente. 

- Atirai suas oferendas no poço, para que Steve Jobs ouça nossas preces, nos perdoe, e devolva a vida às nossas terras. Não esqueçam irmãos, de gritar o nome da oferenda antes de jogar no poço. - o menino cobriu os olhos com as mãos, mas logo espalhou os dedos pelo rosto para conseguir ver, fascinado. Apegados ao prazer da tortura, mesmo que haja consequência da sequela.

Um a um, eles gritavam para o poço e atiravam as oferendas de seu sacrifício. Uma a uma, as placas retangulares eram jogadas na caldeira no centro do círculo: "A ti te dou iPhone Z, senhor Steve Jobs". "Em nome do Senhor, ofereço-lhe o iPad XX de meu filho". Este mesmo menino puxava a túnica do pai e sem entender, perguntava, pai por que temos que jogar fora nossas coisas? E o pai apenas respondia, meu filho, não seja desobediente, não queremos sofrer da ira de Deus."

Os sacrifícios foram sendo jogados no poço, um homem atirava querosene, e em seguida, um outro atirava o fogo, e enquanto a chama ardia, os fieis, em uma alegria masoquista cantavam em círculos. Quando a chama se apagou, o círculo ficou em silêncio, numa meditação mortuária.

O menino, num gesto de impaciência, engoliu a própria saliva. Mas coçou-lhe a garganta, e do lado de fora tossiu, e todos se viraram, e todos o encontraram.

- Um pecador! - gritou alguém, voz rouca, cheia de ódio. A gente sabe quando a voz está cheia de ódio.

O menino correu, desesperado, e ainda sem entender porque aquela manifestação iria salvar a humanidade. Quem era Steve Jobs e de onde tinham surgido aquelas placas luminosas? Sua mãe dizia que aquilo era um objeto do demônio, e que ele jamais deveria se aproximar daquilo. Steve Jobs é um falso deus, meu filho, o verdadeiro senhor é Larry Page, e seu irmão Sérgio Brin. Nada de Lee Byung-chull ou Bill Gates. Steve Jobs é um deus pagão que matou o grande Wozniak, e desde então, o mundo está essa desgraça. A gente tem que abdicar dos dispositivos para ter a nossa salvação.

Tudo isso passou pela cabeça do menino enquanto ele corria pela alameda abaixo, passando por cima dos pequenos arbustos, pulando para não tropeçar nas carcaças de televisões de 16K e Hiper HD, modelos de 50 anos atrás. Por onde corria chutava garrafas plásticas que se amontoavam ao redor das árvores. Estavam a tanto tempo ali que já se formava uma gosma preta ao redor daquelas que foram sendo enterradas pelo tempo.

Ao longo ouvia os gritos dos fieis tentando pegá-lo. Havia chegado finalmente no bairro. Era um imenso labirinto pelo qual ele não tinha problema de percorrer, entrando em todos os becos que conhecia para despistar os perseguidores. Brincava ali todos os dias com os seus amigos. Porém, suas pernas já davam sinal de defeito quando a perna esquerda começou a sobreaquecer. Ficou desesperado, decidiu parar. Não havia lubrificado o suficiente. Parou por um instante, esperando que seu sangue bombeasse mais para dentro dos circuitos, quando ouviu uma voz infantil, um psiu, por aqui, depressa. Olhou para o lado esquerdo e viu uma pequena porta aberta. Sem imaginar que poderia ser perigoso ou não, jogou-se para dentro. Quando a porta se fechou, o lugar foi tomado por um escuro momentâneo. 

Ouvia-se apenas o som da fraca respiração, do ranger das suas pernas mecânicas, e provavelmente, das partes mecânicas da outra criança, sua e do seu recente salvador. Pararam de se mexer, e ouviram as pernas passando em trotes, cheias de urgência e ódio, tanto ódio quanto as vozes. O menino-anjo fez um gesto de silêncio para o menino-fujão, e esperaram por mais 15 minutos, ou o que pareceu ter sido 15 minutos, para começarem a falar, antes mesmo que pudesse dizer alguma coisa. 

- Por que você está fugindo deles? Roubou alguma coisa? - perguntou o menino-anjo.

- Não, claro que não! Eu não sou ladrão - o meino fugitivo se defendia como quem se protege de um tabefe sem razão.

- Você deve ter roubado. Roubo sim, tenho certeza.

- Para de falar que eu roubei ou eu chamo eles aqui e falo que foi você.

- Pois você se ferrou moleque. - nisso, o menino anjo acendeu uma luz, e por baixo da sua túnica tinha um belo terno recortado. Ele não era um menino-anjo, era só um anjo. Agarrou o menino-fujão pelo braço, abriu a porta e gritou para os outros - ELE ESTÁ AQUI! ELE ESTÁ AQUI DENTRO COMIGO! - acontece que o anjo tinha as pernas curtas, e uma aparência doce, como todo anjo. Mas acaba que a gente se engana pelas aparências. 

O grupo todo seguiu os gritos de ELE ESTÁ COMIGO e foi buscar o menino-fujão-espião-ladrão.

- Eu sei quem você é moleque, disse o homem mais velho. Você é desses lixos que vem roubar nossa oferenda depois pra vender na estrada. - agarrou o moleque pelo braço, e o menino, apavorado, só sabia dizer, me larga seu velho de merda, me larga senão eu chuto seu saco, mas o velho não largava. Ele tentava chutar o velho, e só acertava o ar, e cada chute no ar aumentava o desespero do menino-fujão-espião-ladrão-errachutes.

- Segurem ele pelas pernas. - outros dois homems vieram, e agarraram o moleque pelas pernas. - vamos levar ele pro templo do nosso senhor.

A procissão seguiu, cantarolando, como se tivessem encontrado o Santo Graaal, o iPhone 1. Todo mundo dizia que era lenda. Nunca existiu iPhone 1, e nunca existiu Steve Jobs, diziam os ateus. O ar havia esfriado de repente, e o menino-fujão sentia-se debater, sentia-se que algo extremamente ruim estava para acontecer.

Chegaram no templo, despiram o moleque, pura pele e osso, um corpo amarelado cheio de feridas e que fedia, fedia muito, fedia igual urina seca dos bairros do centro da cidade. Jogaram um balde de água nele, esfregaram seu corpo com sabão e esponjas, e depois o vestiram com um manto negro. Ele se debatia dificultando cada uma das tarefas. Quanto estavam penteando seu cabelo, uma mulher reparou em algo, e num sobressalto, disse quase sussurando para a outra mulher que preparava as genitálias do menino, raspando os pêlos:

- Chama o velho ancião aqui, ele precisa ver isso.

A outra moça secou a boca e engoliu a saliva, levantou e olhou pra nuca do menino. Ficou espantada. O ancião veio e reparou, também espantado, exclamou com uma voz que misturava incredulidade e contemplação. A voz daqueles garotos que lêem ficção científica, e se deparam nas livrarias com o mais novo título que todo mundo já leu:

- O que quer que aconteça, não solte ele, eu já volto.

Um a um todos vieram e olharam a nunca do menino. Alguns pareciam já ter a confirmação de alguma coisa, e se ajoelhavam, despiam-se e choravam, fazendo uma reverência. Era algo igualmente obceno e belo de se ver, alguns com suas ancas erguidas e livres, com suas caras enfiadas no chão. O ancião retornou com um enorme livro, um livro extremamente grosso. Folhou as páginas com tremenda excitação e encontrou, na página duzendo e setenta e dois. 

- É isso, aqui, aqui está! Vejam, vejam! É a marca! É a marca!

Todos iam ao livro e olhavam a nunca do menino. Que aterrorizado, com um nó no estômago, como se estivesse sendo espremido por um rolo compressor diante de uma loja de doces, só podia imaginar o que acontecia atrás dele. Ouvia clamores em uma mistura incompreensível de vozes e cantos, e às vezes reconhecia alguém dizendo: a marca, meu corpo é seu.

Muitas mulheres se aproximaram do menino, e rasgaram a roupa dele. Uma feiticeira, com um toque de magia, transformou-lhe num homem. Espalharam em seu corpo uma coisa grudenta que cheirava a leite e mel. Surgiu depois de uma luz sobre sua cabeça um grande e forte homem. Ele se ergueu, e esbelto e feliz, fez amor com todos, por dezessete dias, sem água, nem comida, nem acesso à televisao ou internet. Perdeu as contas do quanto havia gozado e do quanto havia trazido o prazer às pessoas ao seu redor. Todas elas pareciam felizes e realizadas. A fila do salvador era imensa, e ele, sentado em seu trono, à direita de um grande monitor de 150 polegadas, que iluminava todas as imagens do mundo e da história, esperava, um a um, para receber os seus milagres, em júbilo e gemidos.

O ancião, depois de satisfeito, disse a todos:

- E aqui termina a profecia irmãos. Aqui chega o início de uma nova era.

Ergueram o garoto, e o levaram para o calderão dos sacrificíos. Com ele entraram quatro das mais belas pessoas, nuas. Jogaram um óleo perfumado sobre suas cabeças e os incendiaram.

Todas elas pareciam extremamente felizes e inteiramente realizadas. O menino não era mais um ladrão. O menino era um anjo. Nunca encontraram o iPhone 1.

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