Eu me lembro do quanto nossa vida era repleta de música. Eram músicas ora obscuras, ora festivas, ora eletrônicas, ora progressivas, sim, músicas polêmicas, nada melhor do que isso para ser a trilha sonora do que se aconteceu.
Ninguém entende, ninguém entenderia. Se soubesse o vazio que existe agora, um vazio de tudo. Vazio até mesmo de música. Uma sensação intensa de que algo muito importante se acabou para sempre. Eu acho que precisamos reconhecer quando essas coisas acontecem, e hoje entendo melhor os motivos dos homens tristes. Algo morreu, e não existe ressurreição, isso é o mais trágico de seguir existindo.
E eu percebo cada vez mais o quanto tudo era especial, único, marcado para sempre na memória, e digno daquela tamanha dor quando ficou para trás. Nunca houve nada tão digno para ter tanto pranto, e a vida seguiu apesar de tudo.
Não sei como será o futuro e desde aquele tempo parei de me importar com ele, acredite, não vale a pena. Mas sei como foi meu passado, um pouco pelo menos, pelo menos a parte da que eu posso guardar de bom. Aprendi a descartar o ruim. E era o bom dele. Muito.
Lembro que era uma coisa meio gótica, uma coisa meio anarquista, arriscada, com vontade de vida, com combustível para a vida, como nunca tive, mas livre, intensa. Era mesmo intensa, como a dureza das palavras de um poema em alemão, que é capaz de ser pesado na forma, mas delicado na essência. Este poema em alemão:
Der Blütenzweig
Immer [hin und wider]
Strebt der Blütenzweig im Winde,
Immer auf und nieder
Strebt mein Herz gleich einem Kinde
Zwischen hellen und dunklen Tagen,
Zwischen Wollen und Entsagen.
Bis die Blüten sind verweht
Und der Zweig in Früchten steht,
Bis das Herz, der Kindheit satt,
Seine Ruhe hat
Und bekennt: voll Lust und nicht vergebens
War das unruhvolle Spiel des Lebens.
Herman Hesse
E a tradução de alguém que está aprendendo a caminhar, estas coisas que eu sempre admirei. E esta parte principalmente:
"Und bekennt: voll Lust und nicht vergebens
War das unruhvolle Spiel des Lebens."
"E confessa: cheio de luxúria e não em vão
Foi o jogo inquieto da vida."
Nada foi em vão. Depois de tudo o que ouve, caminho na vida com o peso do Bolero de Ravel, uma pessoa que embala num palco, expressiva, brilhando, sim, brilhando para meus olhos, sem me importar com os olhos que me olhavam, porque só tinha olhos para quem embalava no palco no crescente de Rável. Quantos cigarros, quantas drogas, quantos copos de bebida, e quantos limites ultrapassamos para ver que a vida continua sempre a mesma coisa.
Não consigo mais ser feliz. Mas também não consigo mais ser triste. Não consigo ser nada. Parece que fui roubada, como se fosse apenas um pedaço de carne que respira. Uma existência insistente pairando no espetáculo horroroso do mundo real.
Sobe em mim aquela ânsia, uma preocupação quase materna, eu sei, muito antiquada, mas ainda assim, uma vontade de que se cerque apenas de quem soubesse que merece só amor. Se soubesse o quanto merece de amor, não teria dúvida jamais.
Essa mesma melodia que se repete, a cada ciclo, mais intensa, mais forte, mais anunciante de que algo estrondoso está para chegar, seja a maciez de uma pele branca, branca como a neve, e com perfume de rosas, ou seja a explosão de um coração machucado.
E como cada compasso que segue adiante, estou vendada rumo a um abismo que não vejo, com a multidão atrás de mim sem ver que me empurram para o incrível espetáculo do desaparecimento dessa insignificância que chamamos de vida.
Quem estará presente para tocar a nota final?