Quando temos a oportunidade de ter contato com alguma figura pública que admiramos, seja ele um artista, um intelectual, um esportista, criamos uma expectativa quanto às atitudes da figura. É muito comum pessoas se declararem repudiadas por artistas que não tem humildade.
Eu me lembro de um artigo no Whiplash (link), aliás, um site de jornalismo musical muito fraco, em que o escritor Adriano Ribeiro, um fã inveterado de Iron Maiden, se mostra indignado com o comportamento do baterista dos Beatles que fazia uma série de shows no Brasil, em 2011. A manchete era bastante apelativa, como quase tudo no Whiplash. Dizia "Beatles: baterista ignora fãs em São Paulo".
A queixa do Adriano era pelo fato de Ringo Starr não ter parado para dar atenção aos fãs que faziam campana na frente do hotel em que ele estava hospedado. Ele cria uma narrativa de um fã de 17 anos sonhador que espera ver o seu ídolo, mas tem sua expectativa destruída pela atitude do baterista. E também na reportagem há um vídeo mostrando que Ringo Star apenas acena de longe com um sorriso simpático e depois entra no carro com seu motorista.
Aqui eu gostaria de abordar algumas questões. A primeira delas é sobre o conceito de humildade como sendo uma virtude, e do próprio conceito de virtude.
A busca pela virtude que as pessoas almejam em vida poderia ser uma busca religiosa, se a virtude se restringisse apenas ao comportamento moral. Porém, a virtude pode ser algo muito mais amplo, por exemplo, quando buscamos a virtude poética, a virtude musical, a virtude de discurso, em outras palavras, o máximo, a excelência, tendo como referência aquilo que está muito acima do comum, alçando até mesmo, porque não, características divinas. Poderia dizer que os seres humanos tenham relações bastante emocionais com aquilo que é considerado virtuoso. Não é incomum vermos declarações na internet de pessoas que se disseram emocionadas quando ouviram uma música que foi belamente composta. A arte e a virtude são duas coisas que dançam na mesma pista a muitos séculos. Mas nem toda arte é virtuosa, e nem toda virtude tem relação com a arte, ainda assim, há quem busque na arte apenas aquelas que se encaixem dentro do seu conceito pessoal do que é considerado virtude. Talvez por isso que na arte o diálogo é tão efusivo, e temos tantas formas diferentes de manifestação artística, uma vez que tivemos milhares de artistas na nossa história que buscaram o alcance da virtude dentro da sua perspectiva de vida e cultural pessoais. Essa ideia propriamente é muito ampla e discutida até hoje, e saber exatamente o que é virtude ou não tem sido deixado em aberto por muitas pessoas que não se atrevem como determinar o que é considerado arte e o que não é.
Isso me leva ao próximo ponto, o da humildade como virtude.
A humildade é uma qualidade que visa a simplicidade, ou, segundo alguns dicionários, uma virtude que se caracteriza pela suas próprias limitações, sua própria simplicidade.
O homem que se considera comum espera no seu ídolo artístico essa qualidade, porque quer se reconhecer nele. É muito comum no meio musical. O fã, que vem da classe financeira pobre, miserável, quer se reconhecer no seu ídolo, rico e cercado de luxos. A postura humilde do ídolo é uma forma ilusória de dialogar com o fã, é de dizer ao fã que "você e eu somos iguais." Pois eu digo que não, isso é falso, não são iguais.
A qualidade de humildade é uma armadilha cruel. O fã que busca se igualar ao seu artista está se enganando. Quando se compra um ingresso para ver um artista em performance, estamos pagando pela arte, não pelo artista.
O ídolo almeja a humildade, ainda que superficial, para não se distanciar tanto do fã, mas não se mostra tão humilde ao ponto de se igualar a ele. O fã, por sua vez, sente-se confortado pelo ídolo, pois percebe que, apesar de sua vida difícil, ele tem alguém que o compreende. É um jogo mental perigoso, e talvez mais um mecanismo que contribui para a colonização mental e espiritual do brasileiro, que tanto destrói nossa auto estima.
Não é correto com o artista que passou horas de sua vida se dedicando à sua arte dizer que é igual a uma pessoa que não alcançou o mesmo patamar, e não estou discutindo meritocracia aqui, pois acho esse conceito igualmente falso. Estou apenas querendo dizer que a ideia de virtude e de humildade parece aprisionar a mentalidade do brasileiro naquilo que ele considera louvável e não louvável.
Um cozinheiro de restaurante não pode ser virtuoso então, apenas porque não está cercado de câmeras? A valorização comportamental começa em si mesmo, compreendo isso. Mas ao mesmo tempo é extremamente difícil romper com este ciclo de escravidão mental quando se está inserido em uma sociedade que diz, diariamente, o que é considerado valorizado e diferencia daquilo que não é. Quando vemos em lives de internet a falta de sensibilidade de pessoas que ostentam casas e estilos de vidas luxuosas entre brasileiros que não tem o que comer. E existe uma relação abusiva do brasileiro pobre com o brasileiro rico, quando os mais pobres permitem que sejam cruelmente culpabilizados pelos seu próprio fracasso: é assim mesmo, nasci assim mesmo, então a vida é assim mesmo. Só me resta ser humilde.
De falsidade em falsidade vamos corrompendo mais e mais a única coisa que parecia restar na vida do brasileiro: sua própria dignidade. Não, nem essa existe mais. Para encarar o problema, faz-se necessário dizer, em voz alta, que ele está ali. Em outras palavras, quando vemos uma barata no chão, pisamos na barata, e não no chão vazio, esperando que a barata passe debaixo de nossos pés.