Duplipensar é um clichê da literatura, mas um clichê inquietante e traiçoeiro. Testa nossos limites e nos culpa pela condição de vítima. Duplipensar é revisar a linguagem. Revisar a história abre a possibilidade para novas interpretações dos fatos, mas revisar a linguagem nos torna imunes às sensibilidades.
A traição física é uma coisa pífia, porque para mim, ela é a medida do nosso amor próprio, e feliz é daquele que dela se desfaz tão rápido, porque permite atingir uma compreensão da dimensão da relação humana. A traição física só atinge aos que, tristemente, ainda acreditam na própria fragilidade. Eu lamento por estas pessoas que se agarram com desespero à barca que carrega as promessas de uma vida sem dor. A traição física é a dissolução do orgulho, como pó, e que uma vez sentida, dói, obviamente, mas passa. Mas a pior traição a meu ver é a da fé, mais difícil de suportar, e causa maior instabilidade quanto ao futuro. Causa danos sobre o ser, e por um instante, rompe com nossa percepção do que é verdadeiro e o que não é. A traição da fé é como a derrubada de muros que nos cercam, muros estes que são invisíveis, é um rompimento com o que acreditamos ser real, para termos que, imediatamente, aceitarmos o horror que se apresenta sem aviso aos nossos olhos. Mas há quem chame essa traição de realidade.
Não é possível crer mais que haja apenas um único conceito de realidade. Já está claro para mim que realidade é nada mais que uma palavra para justificar a vontade das pessoas de mais poder sobre as pessoas de menos poder. E para esse nome, realidade, as pessoas de mais poder escrevem as regras que ajustam-se ao que o momento histórico exige. Por agora, realidade é querer que aceitemos a normalização da poligamia, e para isso, como um guarda-roupas cheio de diversidade, temos um cabide para cada explicação: os animais são poligâmicos, logo, a natureza é poligâmica. A lógica desse argumento é a falácia da generalização, porque para torná-lo verdade, é preciso fazer-se acreditar que todo animal de toda espécie é poligâmico, e sabemos que isso não é verdade. Realidade é, talvez, apaziguar o alarde de certos grupos que se recusam a viver sob o estado de barbárie, pois afinal, são fracos, e viver sem estado de barbárie é viver em um estado de fantasias, e por isso, tão logo rompemos nosso contrato com a sensibilidade, e deixamos de nos horrorizar com o sofrimento dos outros. Mas para isso é preciso aceitar, talvez, que os homens não tenham nenhuma outra necessidade que não à fisiológica, e que o exercício intelectual é inútil, como pode ser demonstrado por Daniel Keyes em Flores para Algernon.
Uma pessoa se molda pela dor e pela dúvida, e é a dor e a dúvida que nos traz ao solo, desvencilha ilusões e clareia o pensamento. Lava-nos a mente da sujeira das mentiras que contamos a nós mesmos, iniciadas provavelmente pelos nossos entes mais próximos. Eu aclamo àqueles que desde cedo perceberam o quanto este mundo é violento e inseguro, e que é loucura tentar entendê-lo. Esse é, talvez, o sacrifício religioso que tantas pessoas cristãs esperam que aceitemos, por bem ou por mal, como está escrito no livro deles.
Essa traição revelou muitas coisas sobre a natureza humana. Nesse mundo perverso toda a maldade se transforma em justificativa. A raiva justificada foi chamada de abuso. Indignação foi chamada de loucura. Amor foi chamado de ingenuidade e tristeza foi chamada de fraqueza. Lágrima de dor foi chamada de escândalo e a reclusão foi chamada de covardia. É esse o mundo em que vivemos.
Também chamam à invasão e genocídio de progresso, e chamam a agressão e ofensa de sinceridade. Chamam ao narcisismo e egoísmo de amor próprio, e à covardia chamam de autenticidade. Fatos são chamados de eventos, e eventos são acasos.
Se houve mesmo um momento de genuína raiva, foi o do momento em que fui encubado em uma bolha de mentiras. Já viu uma bolha vista de dentro? Ela distorce o mundo que está fora com cores bonitas e imagens translúcidas. Conseguimos ver um pouco da representação dos feixes da luz do sol. Quando a bolha estoura, o horror é o nosso próprio interior visto de fora pra dentro.
Portanto não me espanta mais a tangente da consciência de querer se livrar de tudo com uma mentira. Não me espanta, não me importa.
Há ainda algo muito verdadeiro sobre a perversidade, de que a nossa moralidade nunca sai intacta e um fantasma nos assombra lembrando-nos do débito que suspende o alívio da alma.
Lembro porque sinto dor. Lembro porque a ferida foi funda e porque não me importo com o passar dos anos, a vida não é lá grande coisa na minha percepção. A vida não é uma fantasia hollywoodiana ou um seriado de streaming.
Não somos os donos de nossa própria história, porque ela é contada como bem querem os outros.
Que eu seja esquecido e isolado do resto do mundo, como muitos dos que vieram antes de mim o foram.
Não saberão sequer se meu nome é o meu nome, ou se o que escrevi aqui foi mesmo escrito por mim.
Abdiquei da auto indulgência e do devaneio de que tenho papel transformador.
Nada é sagrado e nada é eterno. Verdade é apenas inconveniência que acorda com o lado que estamos do muro, ou se permanecemos sobre ele. Tudo virará esquecimento e excesso, tudo se tornará dúvida ou indiferença.
Ódio à vida, amo a dúvida. Como ódio aqueles que a ela se apegam estupidamente. Os animais inveterados que se educam apenas para o benefício do próprio entretenimento. Odeio porque sofrer, amo porque prazer.
Cause um colapso social e as pessoas levantarão bandeiras por motivos errados. Dirija um ônibus na praça dos prazeres, e erga as cores da liberdade, igualdade e fraternidade, enquanto ecoa o vazio que isso significa. Cultue a falsa bondade e compadeça-se por benefício de sua própria moralidade, a perspectiva que melhor lhe dá uma aceitação coletiva. Erga a bandeira de eventos pontuais e os tome como verdade.
A histeria é a maior inimiga da compreensão, e por isso já estamos todos condenados.
Estive prestes a saltar do trampolim, o benevolente salto de fé, que busca iludir a vida com aquilo que chamamos dignidade. E nadando nessas águas estranhas, por horas, dias, até mesmo anos, sequer pude notar a falta de ar. Acostumei a ela, e aprendi a viver sem respirar. Entendi que não preciso de ar para existir, que a consciência e a subconsciência são uma farsa, e que alguém me dá o sinal de que um cartão postal me aguarda na porta de casa.
Nesse cartão há a figura de um anjo sendo o centro das atenções de uma orgia. Diversos homens, mulheres, gatos e até mesmo uma girafa direcionam sua atenção para as necessidades do anjo, e mal eles podem perceber que o anjo, na verdade, os escravizou. E se eu olhar atentamente, essa imagem não é uma figura de tentação e ação, é uma imagem presa ao brocado de um homem moderno que me aperta a mão e me chama de amigo. E enquanto me aperta a mão, a vida se vai de mim, deixa de me acompanhar, e em seu lugar, o mesmo anjo que teve o gozo da imagem, com sua pele branca e macilenta, suada e fria, com o mesmo olhar vazio e inexpressivo de quem sai do ecstaze de um século, dá lugar a uma imensa figura de manto cinza, que solta poeira por baixo dos pés quando anda. Uma poeira que vira rastro, gruda em todas as partes do corpo deixando a pele áspera e pegajosa.
Falando em século, disseram para mim que o mal do século era a depressão e o câncer. Há ainda algo pior, que é esquecimento.
Há quatro anos atrás nesse mesmo sete de setembro, nessa data em que um homem com diarreia determinou que o país não era mais dos colonizadores, mas dos comerciantes que viviam de dejetos e escravos, nesse mesmo dia segui com a mesma independência. E quem se crê que independência se confunde com a alívio, ilude-se; independência é morte.
Na vida do absolutista o anjo da orgia confunde desejo com manipulação, e recai sobre a tendência de que, ou isso ou aquilo, e do contrário, dai ao mundo o fogo e o tormento. Nada muda depois da independência senão o salitre sabor de que o que houve na verdade, foi uma traição.
A maior verdade está, talvez, em tudo que não se pode explicar. Verdade que não se explica, contempla. Torna o uso da palavra e a verdade se destrói. Portanto fato, megalomania e traição andam de mãos dadas.