Pular para o conteúdo principal

Uma mentira contada mil vezes...

Não concordo com a fala popular de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade, porque ela tem um defeito lógico bem a princípio: se eu disser mil vezes que uma casa vermelha se ergueu e começou a caminhar sozinha em direção à beira da estrada, me agredindo no caminho, a ponto de me machucar, isso não se tornará verdade. Para que essa história se torne verdade, eu preciso primeiro de um aliado, uma testemunha impressionável e que se deixa persuadir pelo que eu falei. Ele não precisa nem mesmo ser meu amigo, apenas um ingênuo que estará ali pra dar sustentação, e às vezes, até mesmo uma impressão de que a minha mentira tem lá sua lógica.

Este meu aliado pode dizer coisas assim: "é verdade, pois ouvi dizer que estavam construindo casas mecânicas autômatos, que se movem sozinhas conforme as necessidades do seu dono, e são programadas com defesa pessoal, tudo pelo computador". E pronto. A minha multidão, a minha plateia, as pessoas que eu arrebato com a minha história sedutora e curiosa, terão reações múltiplas. Dentre os muitos que ainda continuarão sem acreditar, isso não importa, porque a intenção não é convencer a todos, e sim convencer as pessoas certas.

Logo surgirá alguém que, achando ser bem informado, dará ainda mais combustível à minha mentira. Dirá ele "eu assisti no jornal que estavam construindo inteligências artificiais para dar autonomia a alguns objetos, então pode ser que seja verdade". Pode ser que seja verdade, e pode tanto ser verdade que mais outra pessoa que também assistiu a mesma notícia confirma a informação, e agora nós somos em quatro, mas ele não se preocupa em confirmar a fonte da notícia, porque na pós verdade, o que importa é o espetáculo da informação.

A seguir alguém diz que acabou de ver uma casa vermelha na beira da estrada, então poderia ser que a minha história fizesse sentido. Muitos começam a acessar seus celulares, e um rapaz jovem, estudante de engenharia diz "eu sou estudante de engenharia e lá pesquisamos sobre pneumática. Nos anos 70 desenvolveram uma tecnologia que suspendia as casas para evitar serem destruídas por enchente", diz isso com a costumeira petulância equivocada dos jovens. Nos anos 70 provavelmente, desenvolveram, alguém provavelmente, em um lugar, provavelmente, para serem destruídas por enchentes, provavelmente. E a minha história passa a ter ainda mais cara de verdade. Nesse momento eu começo a ter ideias egocêntricas, narcisistas, eu começo a acreditar que posso sim, talvez, ter poderes de controlar as massas, e de dar a elas o que eu, e ninguém menos que eu, acho ser o melhor. Eu desperto um instinto protetor e me auto elejo a pessoa que é capaz de compreender mais do que todos até mesmo aquilo que eu ainda não compreendi direito.

Aos poucos, os preguiçosos, os impressionáveis, os ingênuos, os bonzinhos de coração, os persuadíveis, todos eles passam a ficar ao menos um pouco propensos em acreditar que sim, uma casa vermelha pode ter caminhado sozinha em direção à estrada, e pouco fazem questão de saber quem foi que começou a contar aquela história.

Passando um ano após contarem aquele maravilhoso evento social, muitas pessoas encorajam a candidatura de alguém que diz que vai ajudar a todos que se interessam na construção de casas de movimento autônomo e defesa pessoal computadorizada, seja lá qual for a utilidade pra isso. Este candidato diz que a pacata cidade está sob a ameaça de muita violência, imoralidade, sujeira, e que eu fui vítima disso, eu, e apenas eu consigo entender a dor que é, a de que destruíram minha vida por causa desta violência que eu disse que passei. A demanda por compaixão é o manto do mal intencionado, e eu sou mal intencionado.

E este sujeito é eleito, e nunca cumpre o que prometeu. Digamos que esse sujeito seja eu.

E agora vem a parte mais interessante de tudo isso: eu nunca vi nenhuma casa vermelha naquela região, e eu me machuquei porque estava com raiva, dei socos em tudo o que acho ser mais frágil do que eu, e era covarde demais pra confrontar a real raiz de todos os meus problemas. Mas eu não preciso admitir isso, sendo que posso simplesmente fazer as pessoas terem compaixão da minha postura de vítima, e me darem poder de controlá-las como eu quero. Fui eleito e estou acima do bem e do mal.

Uma mentira contada mil vezes nunca será uma verdade, a menos que um único espectador acredite em mim.

Postagens mais visitadas deste blog

PC Siqueira

Foi extremamente triste a morte do PC Siqueira. Nem toda morte é triste. Há mortes que acontecem, e a tristeza fica na saudade, mas nos sentimos felizes por aquela pessoa ter existido. No caso do PC, eu não comentava nos vídeos dele mas sempre o assistia.  Eu sempre defendi que o PC Siqueira por causa daquele infeliz caso, ele não foi aquilo do que todos o acusavam. PC Siqueira era depressivo, e em quadros graves, quando a doença está fora de controle, o depressivo se torna autodestrutivo, inconsequente, não se permite limites. Isso em todos os aspectos: físico, social, mental, emocional, não importa. A pessoa simplesmente não se importa com mais nada. Eu acredito que naquele comentário o PC já estava tão aquém dos limites do que choca as pessoas que ele foi lá e simplesmente disse. Ele pensou "eu me odeio, minha vida é uma merda, foda-se, eu vou dizer, e foda-se" e ele disse, e aquilo trouxe toda a reviravolta para a vida dele que o colocou nessa rota de loucura e solidão. E...

Ciência da Humanidade

Peço desculpas ao rapaz da IBM que estava lendo o livro de Richard Dawkins, Deus: Um Delírio, e que foi rapidamente atacado por mim, por falta de coragem de encarar que existem realidades diferentes da minha. A matemática sempre me fascinou. Não só a matemática, mas tudo o que a usa como ferramenta, os números, a filosofia, a física, a biologia, a química, a engenharia, a economia, as ciências da informação, as ciências dos softwares, as linguagens de programação, a música, a pintura, a astronomia, a poesia, a eletricidade, tudo o que se originou da harmonia dos números, tudo isso pra mim é arte. Se existe algo que já me incomoda faz muito tempo nos sistemas educacionais do Brasil é essa distinção cada vez mais forte entre Ciências Humanas e Ciências Exatas. Eu ouço essa dissociação como o som de uma facada no meu peito, isso realmente me dói e me incomoda. Para mim tudo é ciência humana, até mesmo a matemática. Eu sempre me lembro da frase de Darcy Ribeiro que disse certa vez...

Devaneio de um Sonho

 Eu vejo a distância a morte de uma flor Primeiro ela para de crescer, numa decisão impetuosa A cor que desvanece, empalidece, esmorece. O perfume cheira a frio e a saudade. Pouco igual ao fim de um espetáculo Testemunho o longo adeus, se recolher Dá-lhe água, adubo, carinho ou amizade Ela existe mas para de viver. Na veia corre o sangue em aflição Pois mesmo queira a flor se extinguir Mais forte sinto ainda o desistir. Pra que escolho esta flor como objeto? Servir como o frescor de um novo amor? Ou o consolo expurgo desta dor? Como a vela em dia claro, sob a luz ardente Não quero que se vá, que me deixe, que termine Como pés cansados num deserto transcendente Pende a pétala no instante em que decline. E as pétalas as deixam, avassalada Uma morte por dia, a flor que emudece Mas menos que um sopro de vida: Ao cadáver de pé, uma prece: Tenta, a vida que se arrasta, arrasta ainda e segue.