Eu acordei com o som de água caindo, achei que era uma rara chuva de inverno, mas era só o som dela tomando banho. Levantei apoiando os cotovelos na cama, e olhando pela frestra da janela, apenas uma linha de luz, desorientado, não conseguia saber a hora, claridade da manhã, ou se era manhã, se fazia frio ou calor, se era hora de se levantar ou se ainda podia ficar alguns minutos a mais para relaxar o corpo da preguiça. Levantei e fui até a porta do banheiro. Tínhamos um banheiro em nosso quarto.
- Amor, você viu meu isqueiro e meu cigarro?
- Oi?
Falei mais perto da porta - o isqueiro e o cigarro. Você viu?
- Dentro do bolso? Não tá?
- Ah tá - confirmei quando achei - você não trabalha hoje? - Falei enquanto caminhava para a janela. Acendi o cigarro e fumei distraído olhando para as janelas do prédio vizinho. Eu não sei porque eu ainda faço isso, fumar, assim como eu ainda não sei porque olho para a janela como se tentasse tentar na casa do vizinho com meu olhar. Morávamos em um condomínio com 4 edifícios de 12 andares. A visão dos vizinhos em seus afazeres pela janela era como um programa de televisão da vida real. Não exatamente um drama, eu pensei enquanto soprava a fumça do cigarro para fora, ou nem mesmo uma comédia, apenas um programa neutro, sem gênero nenhum, algo que só vai passando enquanto a gente se distrai em algum lugar em que é forçado esperar, por exemplo o Departamento de Trânsito ou a sala de emergência de um posto de saúde.. Terminei o cigarro e ainda não sabia que horas eram, então não sabia quanto tempo havia passado, até que notei que o chuveiro havia desligado.
- Você não trabalha hoje? - fui abrindo a porta do banheiro. Nosso banheiro era pequeno, um pequeno quadrado de 2,5 x 2,5, em que mal cabíamos nós dois juntos, por isso usávamos um de cada vez. Nunca havíamos tomado um banho juntos em nossa casa, pelo menos não de verdade. Queria tomar banho com ela, e depois pegar o seu corpo molhado e jogar na cama, mas isso não dava, não tinha como mesmo. A única vez que tentamos foi um desastre, eu quase a machuquei de verdade, e meus cotovelos não paravam de acertá-la toda vez que eu precisava virar pra pegar um sabonete ou quando eu tentava ser romântico e lavar seus cabelos para massegear sua cabeça. Seus cabelos eram espessos, volumosos, então quando estavam molhados, ficavam mais pesados do que o normal, como grandes chumaços de água que exalavam um perfume de shampoo com fumaça de trânsito. Ainda assim eram os cabelos dela. Mas ela não estava mais no banheiro. Fiquei tão distraído com o cigarro e com a janela vizinha que sequer vi se ela passou ou não por mim.
- Amor? Onde você está?
- Na cozinha! - ela gritou meio urgente. Ai, caiu tudo aqui, peraí que tá tudo na frente da porta! Não entra senão vai fazer uma zona pela casa.
- Tá bem! - esperei pelo lado de fora, olhando fotos antigas no celular. Ela tem o costume de lavar a calcinha no chuveiro, e talvez na pressa, deixou molhada em cima do braço do sofá. O excesso de água encharcou o braço, e eu já ia ficar incomodado quando eu vi uma foto antiga dela. A gente mandava dessas fotos no começo, e ela ainda era linda, mas aquela foto era a imagem que eu tinha quando fazíamos amor.
- Você não trabalha hoje?
- Peraí, ela respondeu. Sim. Oi? Não, hoje não. Lembra que eu te falei?
- Lembro sim. - não me lembrava.
- Tenho médico.
- Ah sim, ah tá. - enquanto eu dava zoom na foto para vê-la mais de perto, ver o seu corpo mais de perto. - Você quer ajuda?
- Não precisa, não se preocupa. Caiu tudo aqui no chão, ai que droga - enquanto eu ouvia o barulho da vassoura raspando no chão.
- Tem certeza de que não quer que eu faça isso? - eu peguei a garrafa de café morna na mesa, não ia dar para esquentar agora, mas de repente eu tive uma vontade irrefreável de tomar um café. Café de ontem? Não sei. Ela dizia que não sabia como eu conseguia tomar um café de ontem, morno, quase gelado. E juntava com o cigarro, meu hálito, eu, ficava insuportável, ela nem conseguia chegar perto. Costume, eu falava, fazia isso desde cedo, era só pra sentir a mistura do amargo com açúcar. Se você põe tanto açúcar no café, então você não gosta de café, você gosta de açúcar, então por que não pega logo uma colher açúcar e engole de uma vez? Uma vez a gente conversava nesses papos de meio de semana. Que horror, uma colher inteira de açúcar? Vou engordar. Eu continuava a olhar a foto do corpo dela no celular. Foi por isso aqui que casamos, eu pensava, por isso e outras coisas. Mas se a companhia dela foi o altar da Igreja, isso aqui, na foto, com toda certeza foi a porta. Mas a gente nem casou casou mesmo, a gente apenas decidiu morar juntos, e de repente éramos marido e mulher. Melhores amigos.
- Amor? Tá tudo bem aí? - eu abri a porta da cozinha mas ela já não estava lá. Será que fiquei tanto tempo olhando a foto que ela passou por mim e eu não percebi? O chão da cozinha ainda estava meio grudento do açúcar, e a pá e a vassoura estavam encostadas no fogão, largado ali às pressas, e pareciam tão agitados quanto ela, por terem que ser usados fora de seu horário habitual.
- Que horas você sai? Eu fui falando pela casa.
- Daqui uns 20 minutos - ela disse. Ouvi que a voz dela vinha do quarto ao lado do nosso. Como não tínhamos filhos, decidimos usar aquele espaço como um possível escritório. Havia três quartos no apartamento, porém eram quartos pequenos, que pareciam encolher conforme víviamos dentro da casa. Cada par de sapatos, livro, cadeira, peça de roupa ou móvel que colocávamos, cada vez mais que marcávamos nossa presença com nossas escolhas, o apartamento encolhia mais e mais, e ainda assim ela conseguia passar por mim sem que eu a visse, ou talvez eu é quem não prestava atenção quando ela passava.
- Posso entrar aí?
- Ainda tô me vestindo, esperam um pouco, não tô bem hoje - ela era bonita todo dia. Hoje ela ainda é bonita, mas eu compreendo. Antes de decidirmos morar juntos, ela era bonita mesmo todo dia, mesmo eu não a vendo todos os dias, só nos pensamentos e nas memórias em que ela estava ofegante, arfando como um animal em cima de mim, ou na minha frente, ou eu por trás dela, e ela era bonita de todos os ângulos. Hoje ela é minha melhor amiga.
- Você tá se sentindo bem? Vai no médico?
- Sim, vou.
- Você tá se sentindo bem?
- Sim, é só rotina. Eu tô com uma dor no estômago, mas eu estou bem.
- A mesma dor no estômago?
- É amor, é - eu sentia ela impaciente, mas ela acordava impaciente, então eu procurava não reagir. Eu não reagia na verdade, a paciência havia se tornado um hábito tão frequente, e era como se eu fosse um gato que já não se importa mais com moleques correndo atrás dele na rua para apavorá-lo. Eu perguntava isso praticamente todos os dias. Ela precisava fazer um tratamento e os remédios causavam muita dor no estômago, e ela sempre tinha que ir ao médico para ter certeza de que não haviam causado uma gastrite ou coisa pior.
Na parede havia uma foto nossa na festa de casamento do meu irmão. Estávamos cercados de comida e bebida, ela dançou tanto naquele dia, e eu nunca a tinha visto tão feliz e solta. Ela conversou com as amigas como se eu não estivesse ali, e eu consegui ter um vislumbre do que ela era sem mim, e foi algo tão bonito, revigorante, mas muito solitário. Eu desejei estar sozinho naquela hora. Estávamos sorrindo na foto, mas eu cheguei em casa naquele dia e passei horas sentado no sofá tomando cerveja enquanto ela dormia. Ficou muito bêbada então não demorou muito para pegar no sono. O dia seguinte surgiu claro e um pouco melancólico, e ela não estava mais sorrindo, ressaca, disse. Lembro que as lembranças da festa ainda se agitavam em mim, e do quanto eu senti felicidade e alívio no casamento do meu irmão. E logo depois eu decidi sair naquela manhá para comprar pães, comprei um sonho, um croissant, um pedaço de bolo, iogurte, frios, manteiga e requeijão, o café da manhã favorito dela. Também levei alguns pães de queijo. Na fila da padaria na hora de pagar, eu vi que no balcão da lanchonete tinha uma moça de pé, de costas para mim. Ela tomava um suco de frutas sozinha, e eu só pude pensar "o corpo dela era bonito assim". Senti pressa de ir para casa e beijá-la como se fosse a primeira vez, e havia uma forte agitação na minha calça, meu sangue estava correndo forte, e eu quase perdi a paciência pela demora de pagar. Mas na metade do caminho passei em frente à biblioteca e me lembrei da pilha de livros que peguei emprestado e que ainda não tinha lido. Quando entrei em casa ela estava no sofá com um pijama velho e esgarçado e deformado. Um caneca de café vazia e um prato com farelos - você demorou e eu estava com fome, me desculpa? - ela disse para me consolar. Coloquei a sacola com as coisas em cima da mesa - tudo bem - disse com um sorriso sem graça, e preparei meu café.
- Amor? Você tá aí? - disse em frente à porta, e quando abri e entrei, ela já não estava lá. - amor? você quer que eu prepare alguma coisa para você almoçar hoje?
- Não, não precisa, eu a ouvi gritar da sala. - tentei voltar mas a porta havia emperrado e eu não conseguia sair.
- Eu posso fazer um frango, um filé, e talvez cortar uma salada, o que você acha? - eu dizia enquanto forçava a porta para se abrir
- Qualquer coisa que você fizer está bom - eu ouvia a voz dela meio amaciada e meio abafada porque ela estava na sala. Era como se ela tivesse virado uma pessoa minúscula e entrado dentro de uma bexiga de festa de aniversário, e estivesse tentando gritar com o máximo de fôlego para que eu a escutasse, só que aos meus ouvidos, o som vinha absolutamente normal.
- E um suco de laranja ou limão talvez, você precisa tomar vitamina C para melhorar a sua imunidade, fica doente muito fácil
- É verdade, ela disse. Mas eu já nasci assim amor, você sabe, é desde pequena - ela me disse aquilo tantas vezes e eu repetia que ela precisava tomar mais vitamina C porque eu acreditava que ia curá-la com as minhas palavras. Se pudesse eu daria a ela a minha saúde, trocaria com ela as suas mazelas, e sentiria por ela a dor de estômago. A única dor que eu sentia e que conseguia suportar era a solidão, mas isso não é nada se combinar com o tormento de ter uma dor de estômago com a qual você não consegue suportar, e precisa sempre ir ao médico.
- Qual o nome desse médico?
- Doutor Renato - um médico chamado Renato era estranho, esquisito. Parecia que o médico ainda não havia saído do ensino médio, e que ainda era um adolescente sonhando em ser médico. Ele diria para si mesmo e para todo mundo, sempre que a oportunidade surgisse "eu estou estudando para ser médico", e como ser médico não é uma tarefa fácil, todo mundo se admiraria com a coragem e a audácia do jovem. E agora este Renato era um médico como se as coisas acontecessem na virada do dia, e eu observasse que tudo o que acontece é por força da natureza, apenas pela vontade, e eu sou um mero espectador, assim como eu era espectador das janelas dos vizinhos. Pensei muito tempo sobre o médico e senti vontade de mudar a minha vida, mas eu já estava muito mais adiante no caminho, não tinha como voltar, tinha apenas que me contentar com o espelho do meu banheiro de 2,5m por 2,5m.
Quando eu consegui finalmente sair do escritório, ela não estava na sala. Só havia o perfume dela no ar, as roupas que ela deixou para trás, suas sandálias, um resto de talco de pé no chão, porque ela sempre usava para não dar frieiras.
- Amor? gritei - amor você está em casa? Andei pela casa toda e não a encontrei. Olhei no quarto, no banheiro, olhei na cozinha, e tudo estava do jeito como ela havia deixado, e a presença dela ainda ecoava em todos estes espaços, praticamente anulando a minha, como se eu sequer existisse sozinho. Peguei o celular para mandar uma mensagem mas ela já havia se adiantado:
"Tive que sair correndo, estou atrasada. Leva o lixo pra fora por favor? E não esquece de tirar os do banheiro. Te amo."