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Dança no Labirinto

Estava calor demais. Mais do que o próprio quarto. Ela pensava na próxima, ele pensava nos próximos. Ambos corpos desfalecidos, amortecidos porém vivos. O suor secando na pele. O peito dela reluzia. Subindo e descendo em suspiros, recuperando as forças que ele havia tomado. Ele recuperando o seu estado racional, tentando não se perder nela. Ela só pensava na próxima. Seu sorriso era diferente agora. O olhar esguio, os olhos semi-cerrados tentando exibir alguma sensualidade inocente. Os olhos se perdiam. Nunca se está apenas a dois num quarto a dois. Uma nuvem de lembranças corre por aquelas paredes mal pintadas. Lembranças que existiram, e as que existirão. Ele bem sabe. A dor que teme sentir, mas prefere sentir o conforto do colchão, entregar-se ao momento. Vive mais quem se limita a prever apenas os próximos cinco minutos. O futuro é grande demais, distante demais. "Nós vamos morar naquele apartamento ali", diz a voz tola cheia de medo do prédio ser derrubado no dia s

Mais reflexões

É engraçado, mas nunca vi muita graça nessa vida. Desculpem o tom de voz, ou da fala, ou do discurso, que seja, mas não consigo falar de outra coisa. Isso é deveras engraçado. Quando por mais que digam para ser o senhor da minha mente, eu me entrego, deixando ser levado para onde quer que essa desgraça de pensamento me leve. Imagine se estamos viajando e de repente sou largado no deserto? Lugar quente de dia, gelado de noite, cheio de areia para todos os lados. Até embaixo. Grande dificuldade. Um amigo certa vez disse que não há nada mais chato nesse mundo do que um poeta. Tudo o que acontece ele quer pôr em linhas. Vangloriar-se dos casos corriqueiros, tão inóspitos de glória. A poesia serve pra isso. A poesia e tudo o que vem da nossa mente. Não sou teórico, nem filósofo, mas nesse mundo dizem tantas coisas. Tomei a liberdade de dizer algumas também. Se nos olharmos por nós mesmos. Não, não quero ninguém aqui cometendo suicídio e depois dizendo que a culpa foi minha. Cada um é o s

A Flôr de Belasiel

 Mesmo que seja a mais bela das flores Jamais seria sem meu tronco forte. Tem como âmago o choro e as dores De quem só clama pelo medo da morte. Não é de raiva que faço esse escrito É um simplório aliviamento E sempre me vejo um tanto restrito Por seus inexplicáveis tormentos. Mas não te cales a voz da alma Em cada linha tua sou carregado Para o mais profundo da calma Do tormento de um desgraçado.

Politicamente Amor

Faltam-me os excessos da política? Sobram-me os excessos de amor. Pois não falo do verbojar estúpido Das palavras mentirosas? E dessa vontade vil de se encharutar? O vinho é bem mais suave Os pés grossos pisoteando a uva Gostoso Enquanto que o suco lhe escorre viscoso Entre as pernas e os dedos. Ao mesmo tempo que briga por cifras Por quantas terras desbravarás Desbrava-me o sertanejo que a cifra compra Mas que tua burrice jamais pagará. Enterras os corpos que matarás Enterram-me a vida que desfruto. Discutes os pontos que te orgulham Descubro-me os pontos que me borbulham. Sim, entendo bem do teu discurso E vejo até o amarelo De teu falso sorriso branco Mas jamais estará em lençol brando. Compraze tua boneca Ao orná-la de aromas duvidosos O único e certo aroma O único que creio É do suor que cai do peito E desliza-me ao ventre.

Descascado

Não são só palavras que me lembram você. Nem o seu cheiro, nem a sua voz, nem o seu olhar. Nem mesmo você me lembra você mesma. Uma folha caindo me lembra você. Uma música qualquer me lembra você. O som de um carro passando, ou de um copo sendo lavado na pia. Também me lembram você a noite alta, fria, porém confortável como o colo da minha mãe. As estrelas opacas, ofuscada pelos postes de iluminação. A vontade de fugir daqui pra sempre, isso me lembra muito você. As frutas na fruteira, o começo da chuva de verão. A dor no peito e a dor de estômago me lembram você. Preciso de coisas que me façam te esquecer. Até a minha imagem me lembra você. Não vou mentir pra mais ninguém e menos ainda pra mim mesmo. Que uma árvore verdinha me lembra você. Mas uma maçã descascada também me lembra você. O que cai primeiro? A folha da árvore ou a maçã da macieira? E quando cai foge pra sempre. Eu piso na folha que é mais fácil, e isso a faz se machucar. Pisar na maçã é mais difícil, ainda quando es

Flor Bela Flor Pura

Lavo a flor límpida, sagrada e pura Com as lágrimas mais obscuras Dos erros que cometi. Mesmo sem crer que a luz eterna Dê força aos meus braços sôfregos E ânimo à vida torpe, Não posso deixar, E não deixarei, Que caia a flor sobre o jardim que cultivei. Tão cheia de rancor e nada sinto. Tão sóbria de desgraça e nada vejo. Só a flor que me anima o meu desejo De ser o que não sei que eu serei. Lavo a flor bela, bela e pura Com lágrima única que perdura Dos erros que esperam pela cura.

Escorpião

Aceitando a cura dos venenos Navegando na falsa alegria Instante de amor e de loucura Tardia e confusa melodia Sádico sabor de gostosura Instigado torpor de aventuras Regado de renegados desejos Caio porventura no leito estúpido ----------------------------------------------------------------------------------------- Aceito a cura dos venenos Navego em farsa alegria Instante de amor e de loucura Tardia e confusa melodia Sádico sabor de gostosura Instigado torpor de aventuras Renegado desejo augúrio Caio porventura em leito espúrio (edit. 2021)

Varal

Uma roupa no varal pode lembrar muita coisa. Mas vai depender da roupa, e mais ainda, vai depender do varal. É claro que não falei ainda da lavadeira. Ah, que cheiro fresco de sabão de coco e roupa estendida. Então esse é um varal de casa de campo. Longe de tudo o que conhecemos, mas perto de tudo o que quase ninguém conhece. Assim, um lençol, balançando como se balançam as flores, está ali imponente e bem lavado. Gota a gota seca, devolve à terra o que dela foi tomada, a água. Balança e emite com a sua dança mágica as imagens de ontem, de anteontem, do século passado, quando ainda era semente.  Ah, lavadeira esperta. Lava a roupa rindo, mas não porque está feliz com seu ofício. Lava o lençol porque precisa, pra usar de novo. Com as mãos enrugadas e gastas na beira do tanque, sonha ainda com a próxima lavada, e a próxima. O vestido leve lhe contorna o corpo robusto, as pernas grossas, com manchinhas tímidas aqui e ali. Manchas para ela. Mas para ele, é só mais um temperinho.

Nascer do Sol

Ó puro anjo inexistente Leva-me daqui para o sempre No coração do sol nascente! Leva-me pro conforto incoerente Onde ali jaz minha descendência Pois não quero viver na indolência! Leva-me daqui junto com meus anjos De alma negra e estômago vazio Mas deixa no varal o lençol branco Com a mancha do sangue proibido Como nosso aviso de partida.