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Mostrando postagens com o rótulo Crônicas

Crônicas do Não Saber 4 - Isac Asimov - Fundação 2020

Uma das minhas histórias favoritas nos livros que li é Fundação, de Isac Asimov. Ganhei o primeiro livro de um amigo meu, mas por puro preconceito com a ficção científica, abandonei na minha estante por meses. Um dia decidi dar uma chance, depois de ler tantas vezes a respeito da obra. Eu acreditava que Isac Asimov se tratava de uma literatura de ficção fácil, até mesmo infantil, por causa do cenário envolvendo a própria ficção científica. Com o passar dos anos passei a enxergar a literatura de ficção como um entretenimento, mesmo aquela que se pretende ser clássica e explorar as reflexões e ideias mais refinadas das ciências, ainda não deixa de ser um entretenimento. Como por exemplo, um filme como Jogos Vorazes que explora a ideia do Darwinismo Social, não precisa necessariamente explorar com detalhes a origem sociológica do termo, nem mesmo os estudiosos que a cunharam, e nem mesmo os outros estudiodos que a combateram, e toda a discussão científica por trás da definição que ilumin

Crônicas do Não Saber 3

Enquanto o café fumegava, eu via, diante dos meus olhos, a dança aleatória do vapor, um vapor fino que só era possível existir por causa da luz que o trespassava, diante dos meus olhos. Eu via o café fumegante diante de mim enquanto segurava uma xícara na altura do nariz, parado e imune ao mundo exterior. Não estava tão imune ao mundo externo, mas era como pretendia estar. - O que está fazendo? - perguntava uma voz. Vê que eu notei que era apenas "voz"? Podia ter dito "me perguntava um som" e assim, seria ainda mais enigmático, mas na minha consciência já estava bem estabelecida a ideia de que palavras só podem ser emitidas por vozes, e além do mais, eu estava absorvido em mim mesmo com tamanha distância do mundo, como se houvesse cavado um buraco em mim e me escondido, enquanto meu corpo agia apenas como um recipiente para a normalidade da vida cotidiana. Porém eu deveria estar fazendo algo atípico, pois alguém usava a voz como um gancho que me arrancava de de

Crônicas do Não Saber: 2

No último Sábado a minha namorada esteve aqui com o filho, um menino ainda na primeira infância. Todos aqui parecem ter gostado do garoto, inclusive meus pais. Quando ele chega aqui eu tenho a sensação de que a casa funciona em razão da presença dele, como se todos os cômodos e móveis se dispusessem para o bem da presença dele. Meus pais, cada um a seu modo, ficam animadíssimos. Minha mãe não pouca comentários de ternura com sua voz chorosa de mãe que tem o coração derretido. Meu pai não consegue esconder por trás da usual expressão dura de nordestino trabalhador aquele sorriso de felicidade e paz por causa do menino. Eu suspeito que brote este sentimento neles por causa de uma necessidade biológica de herança genética, e por nenhum dos três filhos, meus irmãos e eu, termos ainda a menor pretensão de oferecer-lhes netos, eles calam essa angústia. Temos uma geração diferente da deles. Se fosse em outra época eles nos cobrariam diariamente tal como um cobrador de dívidas não oficial ba

Crônicas do Não Saber: 1

Eu não compactuo com o lunatismo conspiratório de Olavo de Carvalho, mas eu seria desonesto demais se não desse a ele os créditos por uma parte do meu amadurecimento. Confesso que só realmente dei atenção a ele por causa das gritarias de confissão desesperada de seus opositores na internet, trazendo na figura dele a imagem de um debochado profeta do caos, caso não sigam o que ele tanto tem a alertar. No prefácio do livro Admirável Mundo Novo, versão da Editora Globo, de 2001, ele fala sobre a condição de saúde de Aldous Huxley, e aqui recrio as próprias palavras de Olavo: "Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visão a aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o seria para muitos escritores numa era de egocentrismo e autopiedade, ocisão de especulações vãs sobre a maldade do destino." É até curioso que Olavo tenha escrito desta

Joelma

- É ele quem tá falando. Ouvi o som de mute  no telefone "ótimo, telemarketing"... é consenso entre os concidadãos que nós odiamos essas ligações, mas eu tenho um motivo a mais para odiar. Foi quando meu demônio de estimação saiu voando pela janela e pelo seu rastreador infernal conseguiu detectar a frequência, e em cinco minutos eu ouvia berros de agonia e desespero do outro lado da linha. Ao que parece aproveitou a oportunidade para deixar claro que não se deve incomodar os seres do outro mundo, e muito menos os seus hospedeiros, o que resultou em por fogo em todo o prédio, rasgar as pessoas ao meio, arrancar suas vísceras e largar os corpos num cenário de putrefação e desgraça que faria qualquer bom Cristão temer pela sua própria fé. Mas minha imaginação foi interrompida: - Senhor? Senhor? Olá? - Sim, pois não. - Meu nome é Joelma, eu falo em nome do Banco do Sudão, e o senhor foi contemplado com a nossa promoção... - Olha Joelma me desculpe - inte

Tropical

Entardeceu cedo esta noite, pois já ouço o sino das dezessete horas. É tarde demais, diria, pois já ouço o badalar dos sinos. Quem badala o sino? E a sina? É assim mesmo. Tem horas que a vida é feita de um monte de frases curtas. Deixa. Para. Olha. Só. Arre. Esquece... Essa coisa que aquece de vez em quando é verdade ou só brincadeira de ser feliz? É tipo um calorzinho assim no peito, mas esse calorzinho é esperança? Por que o amargo é tão certo? Por que o doce é vindo de um processo tão difícil e complicado? A natureza já nos apresenta isso, pois existem mais desertos quentes e frios do que florestas tropicais, mas a gente insiste em ganhar nosso lugar à sombra. Assim que souber da sina, assina embaixo e só espera o sino. Essa hora, tarde demais, parece que as coisas funcionam assim, com trocadilhos pobres, mas deixa. E se for só isso mesmo? Queria chegar no oitavo andar, mas e se nasci para o segundo, porque não hei de por a minha poltrona num lugar melhor onde bata luz, sol

Lúmen

       Exceto pelas vezes em que desliguei as luzes de casa, fechei as janelas, adornei-me em fantasias e imaginações, eu nunca soube antes o que não era ser só. Mas sou completamente, e só, e plena, mas realizada.          Eu entro aqui no meu quarto, nessa luz, nesse etéreo, e quem vê, vê loucura, vê incoerência ou má função de personalidade. Eu vejo eu mesma, da forma como sou, ainda percebendo em tudo o que falta, aquilo que deveria ainda ser. Muitas coisas hão de vir.          E é tudo muito simples quando eu chego da escola, deixo meus materiais na mochila, sento no meu canto da imaginação e divago o possível impossível da minha cabeça. Sou uma feiticeira, uma elfa, uma maga, uma bruxa com poderes extraordinários e que me salvam dessa loucura toda.          Certa vez me deitei no travesseiro, no chão, olhei para o lado, debaixo da cama, encontrei uma floresta vasta, imensa, desmedida, detalhada, repleta. Música de flauta, tambores e cordas vinham até minha cabeça. Era um r

Para pepper dizem peperone, para saccos, dizem Sacconi

Sob influência do horror causado pelas redações dos candidatos, o analisador, preso num tempo psicológico de um passado distante, passou a refletir com uma angústia individual. Não eram de ameaças em caráter pessoal que sentia o horror, ainda porque, até segunda ordem, o analisador, por meios de manter a sua integridade física, intelectual, moral e (por que não?) política, era mantido no anonimato pela instituição empregadora do seu renomado cargo temporário de quem diz o certo e o errado das transcrições dos pensamentos. Repletas de idéias atravancadas, recheadas de bobagens e estapafúrdias construções gramaticais, incoerentes, como se fosse adentrar na mente insólita dessa geração perdida, era horror subsequente a horror, a saber, que o primeiro principal entrave para a compreensão estava na insistência do erro. A gramaticalidade estava condenada, pensou, temia pelo futuro do país, pensava nas crianças, nos seus filhos. Temeu ter filhos. Temeu até mesmo desposar uma merecida mulhe

Uma Bolsa

Duas jovens universitárias caminhavam pela alameda quando uma delas avistou um morador de rua que andava cambaleante, praguejando para o nada. - Depressa, deixa eu esconder minha carteira – disse a primeira. - Para que? – enviesou a segunda. - Oras, não está vendo ali o bêbado? Ele pode querer nos roubar. - Pode querer nos roubar? – fez a segunda jovem, em um tom de pergunta retórica. - É claro oras, eu não confio nesses bêbados de rua. - Eu não confio nesses sóbrios de rua mas isso não é motivo pra eu andar com medo. - É porque você nunca foi roubada por um deles. - Aquele ali já te roubou alguma vez? - Claro que não né! Mas nunca se sabe, é bom não dar confiança demais. - Mas ele sequer parou aqui perto. O homem está lá longe, nem dando bola pra gente. - Que seja, vamos só pass

Tudo bem amor, está tudo bem

Eu vou permanecer aqui no meu canto roído da cama. Ficarei imune a mim mesma, moldando no colchão o formato do meu corpo, enquanto espero por ti, completamente sólida. Permanecerei muda e estática, sem expressão de desapreço, sem desgosto pela vida ou pela morte, apenas esperando. Tudo bem meu amor, está tudo bem. Não vou confundir a generosidade com algo maior, pois generosidade é apenas o agradecimento pela minha existência. Meu coração é frágil e temperadamente necessitado, mas esforça-se para não ver as coisas que mais deseja; esforça-se para não fazer de si mesmo a sua própria armadilha, que é um charco de lágrimas dolorosas e uma angústia silenciosa de apenas aceitar generosidade. Apenas uma generosidade mansa e cálida, que resume a alegria dos meus dias no esticar dos seus lábios, desenhando um sorriso que é típico de você. Dormirei mansa, sóbria, estagnada, esquecendo-me completamente de que é o ar que me dá vida; queimando meus ombros no roçar e rolar interminável

Dança no Labirinto

Estava calor demais. Mais do que o próprio quarto. Ela pensava na próxima, ele pensava nos próximos. Ambos corpos desfalecidos, amortecidos porém vivos. O suor secando na pele. O peito dela reluzia. Subindo e descendo em suspiros, recuperando as forças que ele havia tomado. Ele recuperando o seu estado racional, tentando não se perder nela. Ela só pensava na próxima. Seu sorriso era diferente agora. O olhar esguio, os olhos semi-cerrados tentando exibir alguma sensualidade inocente. Os olhos se perdiam. Nunca se está apenas a dois num quarto a dois. Uma nuvem de lembranças corre por aquelas paredes mal pintadas. Lembranças que existiram, e as que existirão. Ele bem sabe. A dor que teme sentir, mas prefere sentir o conforto do colchão, entregar-se ao momento. Vive mais quem se limita a prever apenas os próximos cinco minutos. O futuro é grande demais, distante demais. "Nós vamos morar naquele apartamento ali", diz a voz tola cheia de medo do prédio ser derrubado no dia s

Malrboro

02h00 A.M. - Toma aqui: acende... Está aceso e a chama o consome. Bem pouquinho, vai indo. O vento bate no meu rosto e eu não sinto nada. Estou dormente, morta, só esqueceram de me pôr num caixão. Vai consumindo, aos poucos, aos poucos... Entra a toxina, sai a fumaça branca, pura... sopro um pouco da minha alma em cada vez. Você acaba de consumir mais de 4000 toxinas diferentes, não há instruções de consumo seguro para este produto. Tomei aqui, acendi. Ei demônio! Demônio está aí? Eu sinto que tem um demônio aí fora me rondando e me roubando de mim mesma. É o demônio de fora? Ou o demônio de dentro? Quem é você demônio? Já foi? - Então toma, acende outro. Fshhhh faz o barulho que queima. Consome outro, que logo acaba, aos poucos, aos pouquinhos... É só uma picadinha moça, só uma. Doeu? Doeu. Quero flertar com o anjo bom pra ele preencher minha alma. Deus, Deus! Ajuda a menina que está aqui! Vou ligar para a Lídia. Não... Vou ligar para papai. Não, melhor a mamãe...

Pequeno Mito Grego

A dúvida era certa, mas o prazer de se estar vivo era inexplicável. Aquela criança tinha um Hércules no sorriso. Sabem do que falo, daqueles sorrisos que até fazem eco nos corredores da escola. O sorriso que corre junto, na hora que bate o sinal do intervalo da escola. Era um pequeno Hércules, já com os dons da retórica apenas no caminhar. O seu andar era um discurso político. Debate político. No dia seguinte todo mundo comenta, rindo gostosamente no aperto do ônibus (aquela bendita maldita linha para o Terminal Bandeira, como prato de pedreiro transbordando, assim pelas bordas). Era tal o poder do sorriso do menino. Chovia sim, chovia muito. Mas na hora em que abriu os olhos e refletiu neles o céu, o próprio céu, grandioso se compadeceu. Abriu-se todo, mostrou sua claridade morna. Aquele cheio gostoso do verão, cheiro de mato e terra molhada. E vem aquele morno acumulado pelo excesso de lixo nas ruas, a rua tão quentinha e quase lavada que dá até vontade de deitar. Vem corren

Um de Isabelle La Fleur

Isso é um caso trágico de vida inconsequente que resultou na minha mudança de cidade. Regado à insônia, vinho (bebida dos loucos pretensiosos), vodca, cigarros e a droga de uma recordação. Ah Letícia, por que me deixou? O seu olhar me olhava de um pra sempre que me deixava estática, segura. Amigas para sempre! Por que foi embora, hein? Hein? Seu cheiro. Tenho saudades do seu cheiro, aquele seu cheiro me lembrava depois de amanhã, que ninguém tem coragem. Eu olhando essa cidade toda amena me lembra você. Um homem cego apoiado em sua vara foi chegando e sentou ao meu lado, de barba e tudo, com a calça jeans amarela batida. Tocou-me a perna na perna. - Escuta mocinha? - como sabe que sou mulher só me pegando na mão? Não saberia dizer de olhos fechados se era a mão da Letícia ou do Rodrigo. Ele nem se conforma, mas amantes são assim mesmo Rodrigo. Não se contenta, se desespera. Olha-me com calmo, olhos cínicos, mentirosos, mas por dentro está em estado de guerra civil, des