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Joelma

- É ele quem tá falando.

Ouvi o som de mute no telefone "ótimo, telemarketing"... é consenso entre os concidadãos que nós odiamos essas ligações, mas eu tenho um motivo a mais para odiar.

Foi quando meu demônio de estimação saiu voando pela janela e pelo seu rastreador infernal conseguiu detectar a frequência, e em cinco minutos eu ouvia berros de agonia e desespero do outro lado da linha. Ao que parece aproveitou a oportunidade para deixar claro que não se deve incomodar os seres do outro mundo, e muito menos os seus hospedeiros, o que resultou em por fogo em todo o prédio, rasgar as pessoas ao meio, arrancar suas vísceras e largar os corpos num cenário de putrefação e desgraça que faria qualquer bom Cristão temer pela sua própria fé.

Mas minha imaginação foi interrompida: - Senhor? Senhor? Olá?

- Sim, pois não.

- Meu nome é Joelma, eu falo em nome do Banco do Sudão, e o senhor foi contemplado com a nossa promoção...

- Olha Joelma me desculpe - interrompi - mas eu não estou com paciência e nem com interesse em nada do que você vai me falar agora tá bem? Obrigado - desliguei o telefone.

Senti pena da Joelma, provavelmente uma adolescente alienada em sua própria função, com seus dezoito anos, fazendo o seu trabalho para ter o mínimo merecido, seu salário que custearia seus vícios e suas ilusões. Mas será que ela sentia pena de mim? Provavelmente deve ter se resignado, ou não deve ter se importado, com o emocional tão adormecido de tantas grosserias paulistanas, mas Joelma só estava fazendo o seu trabalho. Amanhã ela nem se lembraria de mim, ou talvez eu seria no máximo um assunto no ônibus de volta pra casa. Eu já vi vários desses garotos falando dos seus clientes e contando suas histórias com uma empolgação que me dá muita dó. Na verdade é uma tentativa desesperada de esquecer que aquele trabalho é um verdadeiro lixo sem significado, então o tom de voz traduz uma importância que na verdade não existe. Todos eles sabem que não estão fazendo nenhum favor para a humanidade, e talvez não estejam fazendo favor sequer para eles mesmos. Mas será que Joelma sente pena de mim?

Eu estava esperando um telefonema quando Joelma me ligou, e era um telefonema qualquer. Eu não me lembro quando foi a última vez que alguém me ligou porque queria realmente conversar comigo.

- O seu shift mudou, amanhã você começa de tarde.

- Senhor, a sua fatura venceu faz uma semana.

- O contrato de renovação de aluguel está pronto.

- Não estou encontrando o número da sua casa, pode ficar na porta pra gente fazer a entrega?

Um dia desses me pegaram de jeito, e eu comecei a conversar com a vendedora da loja de móveis:

 - E se você fosse se casar com alguém, escolheria essa cor?
- Ah - ela riu simpática, precisava da venda - olha, eu prefiro algo mais neutro, tipo um marrom, ou um bege sabe? Fica mais confortável.
- E sua casa é assim toda confortável também? - O que diabos eu acho que estou fazendo?
- Ah não moço, eu não tenho como bancar os móveis daqui não. Quando o senhor estiver pronto, pode me chamar tá bem? O meu nome é Joelma. - A loira tingida sai. Tingida porque o cabelo original surge na raiz.

Joelma saiu rebolante, e eu mirei aquela sua bunda espevitada afogada dentro de uma calça de linho, uniforme da empresa. Esse uniforme realmente valoriza a protuberância da trabalhadora, você vem pelo sofá de três lugares, você fica pelos peitos grandes da Joelma. Olhei no cartão e ri uma esperança patética de que ela tinha deixado um número de telefone. Como será que isso ia se sair dali pra frente?

- Alô, por favor a Joelma?
- É ela - a voz seca indicava cansaço e pouca lembrança.
- Lembra de mim?
- Não senhor, em que posso ajudar hein? - impaciência, não era a mesma mulher. Meu coração estava partido.
- Hmmm acho que me enganei de número - Desligo, visto a roupa, de nada ia adiantar, Joelma não devia ser o tipo que faz sexo por telefone. Quem seria em pleno ano de 2018? Whatsapp talvez?

Eu admiro até mesmo uma sapataria que fede a poeira e graxa. O homem atrás do balcão é um quarentão que tem na expressão a quantidade de vezes em que as pessoas o definiram por ser apenas um sapateiro. De tanto costurar sapatos eu poderia facilmente confundi-lo com um dockside, mas esses já saíram de moda faz tanto tempo, igual a esse senhor.

- O Joelma, tem cliente na loja! - ele grita

Vem aquela moça morena, a pele está esticada pelo excesso de creme, um sorriso mais simpático vê-se uma ruga aqui e ali, mas a blusinha justa e a calça jeans não entregam a idade. Nada entrega a idade, Joelma é mesmo a mulher dos meus sonhos. O sorriso dela é mais por obrigação do que por simpatia, mas eu dou um crédito pelo esforço. Ela começa a olhar meu sapato, perguntar do problema, falar aleatoriamente, e tudo o que eu faço é mirar naqueles peitos redondinhos por trás da blusinha, sem nem ao menos me dar conta de que aqueles peitos já tem um dono, eu vejo até mesmo a impressão digital do bruto homem sujo de graxa e sem a possibilidade de fazer uma cara mais bonita, que está sentado mais ao fundo batendo num sapato como que para descarregar a frustração de ter nascido como nasceu.

Joelma, cabelos negros e encaracolados está de quatro pra mim e gritando impropérios, tenho que me encostar para esconder porque a Joelma mesmo está só me dizendo que vai custar 35 reais pra arrumar a sola e mais 20 para a costura. Eu pago o sinal e saio envergonhado.

Estava esperando uma ligação de qualquer uma delas, qualquer pessoa que pudesse preencher essa forma invisível que projetei do lado da minha cama. Entre uma revista e um site pornográfico eu desconto a deprimência de minha solidão nas mãos, e saio com vergonha, porque eu não sou mais um adolescente, mas tudo seria diferente se apenas eu recebesse uma ligação.

- Alô? Oi mãe... - eu suspiro decepcionado e com culpa, porque afinal, é a minha mãe, e minhas mãos estão com o cheiro. - Estou bem mãe. Sim. Não. Aham. Tá bem. Não. Ok, tchau.

O conteúdo não importa realmente, é só minha mãe, são só preocupações de mãe, se você tem mãe você sabe como foi a conversa. Mas o lamentável é que tenho mais de 30, e minha mãe ainda me trata como uma criança.

Deito na cama pensando em Joelma. Todas elas. Nenhuma delas é minha, e enquanto chego a essa conclusão eu sinto um peso potente e começo a sufocar. Tomo o remédio e dali a vinte minutos estou dormindo.

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