Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de outubro, 2008

Varal

Uma roupa no varal pode lembrar muita coisa. Mas vai depender da roupa, e mais ainda, vai depender do varal. É claro que não falei ainda da lavadeira. Ah, que cheiro fresco de sabão de coco e roupa estendida. Então esse é um varal de casa de campo. Longe de tudo o que conhecemos, mas perto de tudo o que quase ninguém conhece. Assim, um lençol, balançando como se balançam as flores, está ali imponente e bem lavado. Gota a gota seca, devolve à terra o que dela foi tomada, a água. Balança e emite com a sua dança mágica as imagens de ontem, de anteontem, do século passado, quando ainda era semente.  Ah, lavadeira esperta. Lava a roupa rindo, mas não porque está feliz com seu ofício. Lava o lençol porque precisa, pra usar de novo. Com as mãos enrugadas e gastas na beira do tanque, sonha ainda com a próxima lavada, e a próxima. O vestido leve lhe contorna o corpo robusto, as pernas grossas, com manchinhas tímidas aqui e ali. Manchas para ela. Mas para ele, é só mais um temperinho.

Nascer do Sol

Ó puro anjo inexistente Leva-me daqui para o sempre No coração do sol nascente! Leva-me pro conforto incoerente Onde ali jaz minha descendência Pois não quero viver na indolência! Leva-me daqui junto com meus anjos De alma negra e estômago vazio Mas deixa no varal o lençol branco Com a mancha do sangue proibido Como nosso aviso de partida.

Madre Pérola (3)

 Caiu a Madre Pérola Como quem cai da árvore da fé Mas caiu simples Brilhante Reluzente. E caiu como quem tem alma de anjo puro Que brilha quente e forte espantando o escuro Rolou, rolou pra longe E um dia é pra lá que eu irei Ou meio sem vontade Ou com triste dor e coragem Mas um dia É pra lá que eu irei.

Madre Pérola (2)

 Tão pura e sólida era a Madre Pérola Que em dia de outono debaixo d'uma árvore Até mim ela rolou com sua castidade. Ó pérola dourada, tu és o meu estigma. Quão forte é a dor que ainda sinto E quanto mais ainda sentirei? A pérola rosada que o túmulo embeleza Deitar ali seria meu único conforto De ter em mim tão próxima tua alma De resumir minha dor em simples calma Angústia é o que jaz vivo no homem morto. Ó Pérola dourada, tu és o meu estigma Minha alma ali está e ainda sinto E enquanto ali estiver não sentirei.

Madre Pérola (1)

 Deitou-se no meu colo um dia O colar da Madre Pérola Doze anos esperei Doze anos aguardei lustroso dia! Deitou-se no meu colo um dia O colar da Madre Pérola E o calor imperou Tanto tempo aguardei caloroso dia! Mas antes que minhas mãos a alcançassem A mão fria despedaçou-a em meus sonhos Mão política ou fanática Mão cristã ou judia Não importa Tal mão depositou em mim imensa dor Rolou, rolou pra longe meu amor E agora o alívio em suspiros eu espero Como espero ansioso por este dia.

Dialogando o Tic-Tac

O Tic e o Tac É o controle da nossa trilha Que vem já de longas milhas Manter o café na mesa O almoço na marmita E a janta no sofá. O Tic e o Tac Agora compreendo Um vem para derrubar paredes E o outro para construir Mas não pelos que derrubaram E sim pelos que muito choraram. O Tic e o Tac É o nosso alimento O ar que respiramos A música que cantamos O livro que não compramos Por faltar água e trigo E energia elétrica. O Tic e o Tac Entendo Vêm de elétrica e artesanal Vêm do bem e vêm do mal Mas só do mal se alimenta E do bem, bem, orienta. O Tic e o Tac É sem mistério É sou ouvir no monastério É sou ouvir no cemitério É sou ouvir no ministério. Agora vou sair Meu relógio está quebrado E sem ele eu perco a vida E sem ele não tenho norte Não tenho dia nem noite Nem de nascido nem de morte O Tic e o Tac eu preciso Tanto quando o paraplégico Necessita se sentar.

Mês de Maio

Faça chuva Ou faça tempestade Não importa a firmeza da estaca Uma fêmea com olhar de bondade Onde o silvo dos olhos rasga Até a mais imune alma Arrancará dali O suporte das mesas de maio. título alternativo: Triste Mês de Maio

Lodo

 Vem aqui o hipócrita novamente Novamente vem o falso doente Lamentar E o lamento dessa vez É pela imensa estupidez De ter na pele quente a mão E um amor oculto no coração O rumo se perde todo Quando ao invés de arco de grinaldas Encontra no meio da praia Aquela que se fez do lodo. Do lodo que veio daquela A qual feita foi da costela. E desde a infância sonho E não paro de sonhar Que em grama verde vou Ao belo lodo me entregar. Mas há lodo que se faz lama Mesmo em cores e pingentes (Cores vermelhas e quentes) Não escuto mais Os risos que nunca ouvi na infância Escuto apenas na lembrança Do impossível desejo De voltar a ser criança E encontrar em toda esquina A princesa que escolhi. Numa cama de viúva Não se ouvem mais as brisas Não há perfumes elísios Não há o inexplicável delírio. Numa cama de viúva Hoje há apenas o grito. Um cigarro aceso Um copo que queima Um olhar que não vê Uma voz que não fala E um coração que não bate. A fumaça sobe e dissolve Junto com o sonho inútil Mas o sonh

Maçãs

Foi ali debaixo daquela macieira Onde despencou do mais alto galho A bela maçã vistosa Doce Sensual Tentadora E quando caiu no chão Ruiu as estruturas da alma Tremeu as bases da calma Fortaleza Tremores Restos Maçãs mesmo com casca são gostosas E provar do líquido suave É provar do pecado grave É viver de súbita culpa Por desejar a bela maçã Que sem querer despenca do alto E querendo nos faz descobrir A maior lei da gravidade.

No Restaurante

 O garçom: - O que vai ser senhor? O cliente desesperado: - Eu desejo carne ao molho de lavanda. O garçom sobreolhando, olhando os dedos do cliente: - Sinto muito, o senhor está à mesa algemado. O cliente resignando: - Perdi a fome então.

Desejo Íntimo

Escreverei sobre os belos lugares Belos espaços vistosos Voluptuosas noites que não existiram Diversas garrafas que não entornei Dos olhares que me tiraram o fôlego E dos olhares que me tiraram o intento E a concentração Para só assim preencher Na mente imaginária Os buracos que eu mesmo criei.

Há a Luz, Entretanto

Eu sinto que quero abraçar o mundo Eu sinto que quero que o mundo me abrace Que tire a minha alma do impasse De ser um riso fútil pelo dia E um choro um tanto inútil no noturno. Estas cordas vis Que presas aos meus braços Lhes dão o movimento E uma maior Hospedada no cérebro Evitam o choque com a persuasão Eu uso o toque Com a sensação De que estou dopado Do meu conhecer. As falas que eu quero Não me pertencem E a língua que eu uso E em alto grau de desuso São como as asas do burro recluso.

Das Impurezas do Templo

Eu vivo numa alcova sagrada E diariamente um anjo bom Visita-me despindo-se do manto Que herdou do pai que eu não creio. A flecha sibilou do inexistente Ruidosa e poderosa atingiu-me O coração morto amortecido. Que agora devidamente aquecido Virou um nômade de espírito ardente. De olhar preciso e espada quente Me ataca em pose indefesa E se o ato ao invés de sacro é de morte Então mate-me e depois jogue minha carcaça Sorrindo para ser levada ao mar Entregue às divindades e à sorte.

Deserdada

Louca, louca e como sofro! A dor da indulgente desgraçada A dor de uma megera deserdada De uma mente insana inconformada Eu tinha em pote o ouro afortunado Tinha a flecha esperta presa ao peito Doces pétalas perfumando o leito Qu'em abundância viva, era estreito. Mas hoje só o assola a mágoa escura Hoje, ai, hoje é só de pranto O pranto que em delongas se perdura. Pois se antes tinha eu a vida flora Sozinha destruí a todo encanto E agora a minha alma se deplora.