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Mostrando postagens com o rótulo Contos
Eu acordei com o som de água caindo, achei que era uma rara chuva de inverno, mas era só o som dela tomando banho. Levantei apoiando os cotovelos na cama, e olhando pela frestra da janela, apenas uma linha de luz, desorientado, não conseguia saber a hora, claridade da manhã, ou se era manhã, se fazia frio ou calor, se era hora de se levantar ou se ainda podia ficar alguns minutos a mais para relaxar o corpo da preguiça. Levantei e fui até a porta do banheiro. Tínhamos um banheiro em nosso quarto. - Amor, você viu meu isqueiro e meu cigarro? - Oi? Falei mais perto da porta - o isqueiro e o cigarro. Você viu? - Dentro do bolso? Não tá? - Ah tá - confirmei quando achei - você não trabalha hoje? - Falei enquanto caminhava para a janela. Acendi o cigarro e fumei distraído olhando para as janelas do prédio vizinho. Eu não sei porque eu ainda faço isso, fumar, assim como eu ainda não sei porque olho para a janela como se tentasse tentar na casa do vizinho com meu olhar. Morávamos em um condom

Uma mentira contada mil vezes...

Não concordo com a fala popular de que uma mentira contada mil vezes se torna verdade, porque ela tem um defeito lógico bem a princípio: se eu disser mil vezes que uma casa vermelha se ergueu e começou a caminhar sozinha em direção à beira da estrada, me agredindo no caminho, a ponto de me machucar, isso não se tornará verdade. Para que essa história se torne verdade, eu preciso primeiro de um aliado, uma testemunha impressionável e que se deixa persuadir pelo que eu falei. Ele não precisa nem mesmo ser meu amigo, apenas um ingênuo que estará ali pra dar sustentação, e às vezes, até mesmo uma impressão de que a minha mentira tem lá sua lógica. Este meu aliado pode dizer coisas assim: "é verdade, pois ouvi dizer que estavam construindo casas mecânicas autômatos, que se movem sozinhas conforme as necessidades do seu dono, e são programadas com defesa pessoal, tudo pelo computador". E pronto. A minha multidão, a minha plateia, as pessoas que eu arrebato com a minha história sedu

O Animal que cura as dores

Era uma vez um animal gigante voador, cujas asas eram tão belas e resplandecentes, maravilhosa e mágicas, que apenas um abraço curaria todas as dores e tristezas. Certa vez o animal foi chamado para um reino a fim de curar as mágoas de toda a nação. Mas o rei, ganancioso pelo poder do maravilhoso animal, ordenou que ele fosse capturado para ser estudado, e quem sabe, aprender o seu poder.  Quando o animal chegou no reino, ao invés de ser recebido com alegria e presentes, como era de costume, ele foi recebido por lanças e flechas. Um menino órfão que estava ansioso esperando pelo animal, e era encantado pelo animal, se jogou na frente das flechas e lanças, mas por ser muito pequeno, não conseguiu salvá-lo. O menino chorou a noite inteira, a ponto de manter todos da cidade acordados. Após horas chorando, o menino se cansou e finalmente conseguiu dormir. Naquela noite ele teve um sonho com o animal, e implorou para que voltasse à vida para que pudessem brincar, para que o animal pudesse c

As Angústias de uma Inteligência Artificial

Esse cara é impossível de agradar! - disse Jonas 3. - Ok, lá vai: Aqui vão algumas sugestões de academia: Sport Fit, Smart Fit, Fitting Academy, Fit for Real... o que? Locais com baixa violência? Natural Springs, Canada. Sprawl 17, EUA, Yamaha Hills 3, Japão; Rio 3, Brasil. Rio 7, Brasil...  Ah, melhores comidas para a saúde? Ovos, são ricos em ácido fólico, proteína, zinco, ferro, manganês e potássio e contém apenas 5 gramas de gordura saturada. Alho tem um misto de vitaminas A, B, C e mineiras como ferro, iodo, zinco e cromo, além de compostos ativos como alcina, por exemplo. Maçã, além de saborosa é uma fruta rica em fibras e ajuda a regular o intestino, garantindo menos estresse no canal do reto. Ajuda a proteger o coração de doenças e limpar as artérias de... maiores atletas da história? Top 10 músicas da última década? Top 15 ditados mais populares e usados na internet... 20 maiores pintores do modernismo do Século XX. 20 maiores pintores do pós modernismo do século XXI e do redu

A Porta

Quando despertei num quarto fechado, sem janelas, sem decoração, apenas eu, uma cama, e uma porta,  ouvi a está voz de um arcebispo suntuoso e elegante, que me fazia companhia. Ele era meu único alívio de solidão. Curioso, ele já me alertou: "O excesso de perguntas é o que leva o homem a loucura. A única resposta que precisamos, está em Nosso Senhor Deus. Todas as perguntas devem partir dele, e todas as respostas levam a ele, pois escrito está que Ele é o Alfa e o Ômega,  portanto tudo veio Dele e  tudo volta a Ele." Dito isso, o arcebispo suntuoso desapareceu como uma nuvem de poeira, e se sobrou dele alguma coisa, foi o desconforto alérgico na respiração. E como se fosse fruto da minha imaginação,  não mais o escutei. Mas havia diante de mim aquela porta. Era simples, de madeira, e maçaneta de ferro, lisa, sem ornamentos, sem enfeites, sem detalhes. Apenas uma tábua que separava um espaço do outro, o único obstáculo que me confinada neste pequeno cômodo de 3 x 3. Não er

O Erro Divino

- Quem é que bate na minha porta a uma hora dessas? - Sou Deus! - Quem? - Deus, Deeeus! Abre! - deus? - Não, não deus, Deus, Deus meu bom homem. - Pois não conheço Deus, apenas deus. - Não é assim que se refere a mim. Sempre fui Deus e sempre serei Deus. - Mas para mim é só deus, porque eu mal te conheço. - Não me conhece? De forma alguma? - Não, não conheço. Nunca ouvi falar de Deus. - Espera um momento. Que dia é hoje? - Hoje é Quarta-feira. - De que ano? - Quarta-feira de 1922. - Aquilo ali é uma lâmpada? - Sim, é uma lâmpada. - E aquilo ali é uma TV Holográfica? - Sim, é. Uma TV Holográfica de resolução em 32K pixels. Precisa usar esses óculos aqui pra não doer a vista. Uma coisa visa a outra. - 1922 você disse? - Sim, 1922. É Deus o seu nome? E você é o que? Vendedor?  - Não meu filho, eu sou Deus! Mas 1922 e TV Holográfica? 1922 depois de Cristo? - Depois de quem? - Depois de Cristo, meu filho. - Cristo? O que seria isso? - Não conhece a Deus e nem a Cristo? O homem que enviei ao

Rainha

A última escrava negra do Brasil foi libertada em 2012. Você sabe o que aconteceu com ela depois? Saiu com recomendações do senhor, dizendo: - Você é escrava, mas é como se fosse da minha própria família. Se precisar de qualquer coisa pode vir me pedir ajuda. Ela saiu da casa de seus senhores, sem rumo, sem saber o que fazer. Tinha sido escrava a vida inteira, então só sabia engomar roupa, botar cozidos no fogão a lenha, ajuntar as galinhas no galinheiro, pegar ovos, bater roupa na pedra, essas coisas de escrava. Andou um pouco diante da Casa Grande, e ficou hesitante, voltou para a casa dos senhores, que observavam tudo da fresta da janela do Estudo da casa. - Meu senhor, dizia a nobre escrava, meu senhor peço ajuda. - Pois diga velha livre, dizia o senhor, agora que é livre, te trato de igual pra igual. - Meu senhor me disse que se eu precisasse de ajuda, podia pedir qualquer coisa. - Pois peça velha livre, disse o senhor, que era um homem nobre e rico, p

Milagre da Semana

A cultura de um povo é refletida pelas suas diversas formas de se manifestar. E é aceitável que sempre seremos ridículos aos olhos do futuro. Ridículo de uma forma que será impossível escapar da chacota. Como alguém em sã consciência jogaria defuntos na única fonte de água existente na cidade? Mas o assunto agora é outro. Um menino magro, tão magro, que suas roupas pareciam sacos de batata sobre seu corpo, provavelmente uma roupa que lhe servia, sem se dar ao luxo de escolher, olhava fascinado, do lado de fora da grade que cercava a casa de culto, as pessoas suas longas túnicas, encapuzadas, num cântico bizarro em notas dissonantes. Era extremamente proibido um não-fiel bisbilhotar o culto, sua mãe vivia lhe dizendo que as pessoas que se vestiam bem o faziam porque tinham almas podres para esconder. A guerra entre pobres e ricos já durava a muitos anos, mas a curiosidade era muito maior do que a condição, e por isso ele estava ali. Homens cantavam na tonalidade do cântico, man

Cinco passos de Gullar para a morte

Gullar era um homem apaixonado por tudo, pela vida e por todas as mulheres. Apaixonou-se candidamente pela sua estudante favorita quando ela tinha apenas dezesseis anos, e o amor que cultivaram era o bilhete de entrada para a peça teatral que se seguia. A vida bateu-lhe forte no peito e o acometeu com uma doença, uma moléstia, diriam os românticos. O amor acabou. O rancor os separou. A moléstia da solidão o fez perder o jeito. Não sabia diferenciar bom dia e boa noite sem indagar a validade das palavras. Um dia, aos 33 anos, idade jovem para a geração, desceu para pegar o jornal na porta de casa, quando decidiu, finalmente, morrer, após terem-lhe dito, educadamente - Olá, como vai? Seu sorriso bondoso se apagou. Ninguém nunca mais o viu após sua morte.

Protocolo de Reboot

Log do sistema: Buscando vestígio de anomalia... Processando cálculo de possível falha... Anomalia encontrada. Detectando localidade e iniciando protocolo de reboot.  Nossa época é cinza e oca, e ecoa, tanto, que os sons de alegria e de tristeza entrechocam e formam um único grande e bizarro lamento. Não existe mais espaço para o poético e belo, assim como não mais a nostalgia das músicas mais loucas do período Hard Rock dos anos 70. Ficamos presos e enlouquecidos nessa combustão filosófica, política e moral. Nessa transformação de eras. Nessa confusão de atitudes e sentimentos de amor, ódio,tristeza e alegria.  - Encontramos os dois, estão ali.  Estacionaram um carro preto sobre o meio fio do parque e apontaram armas de desintegração em nós. Minha nossa, eles usam isso pra escavar minas, para ir atrás do que resta de silício e cobre nesse mundo, e estavam apontando pra nós, como se fossemos o pior dos criminosos.  Quando muito o rosto dela era um rosto inexpressivo, olhos grandes e e

O Quarto Escuro

Rua do Nascimento, número 1985. Rua dos nascidos, dos resolvidos, rua da esperança talvez. Como daria pra saber sendo que nunca saí daqui? Sou um morimbundo constante, sinto às vezes. O que é morimbundo? O estado de expectativa pré-morte, é o que sinto, e como estou sempre aguardando de quatro feito animal, isso não parece tão errado de afirmar. A vida inteira, sinto, passei aqui dentro, neste quarto, neste endereço tão simplório, e já faz algum tempo que não vejo a luz. Lembro que a princípio tudo era iluminado, então me guio pelas parcas lembranças de como era aqui dentro. Eu lembro que vivia no berço, a sensação de mobilidade era tão pequena, mas o conforto e sabor pela vida eram tão grandes, e a primeira memória que tenho é a de meu pai me carregando para tomar banho. Um sentimento de segurança e proteção tomavam conta de mim, quando aquelas mãos calejadas, porém carinhosas, carregavam meu pequeno corpo e me jogavam para ser banhado na pequena bacia com água morna. A sensa

Ritual de Libertação

      Vou te dizer sinceramente, até porque aqui não tenho risco de me comprometer, ontem foi um dia difícil pra caramba. Dia de trabalho, todo dia de trabalho é difícil. Ficar repetindo a mesma reclamação todo dia, isso é redundância de espírito. Piora até, a situação, me dizem. Não importa na verdade, se as coisas acontecem assim, e eu chego em casa e fico pensando é porque não to sabendo separar minha vida pessoal da profissional. Todo emprego começa com um sonho, normalmente de consumo. Troquei meu sonho por desejos pequenos, desejos de meia hora. A tentativa de grandeza é calada com a porrada diária, isso é duro pra caramba. Vou te dizer que tem horas, não to aguentando mais. O desrespeito coletivo pra tudo o que era correto, não é mais. Nosso lado correto é pura imaginação, é pura fantasia da nossa cabeça, parece às vezes. É só discurso. A gente acha que está tudo bem, mas quando vai ver, isso aqui está tudo uma merda. Ninguém respeita mais o farol vermelho no trânsito.