Pular para o conteúdo principal

A Porta

Quando despertei num quarto fechado, sem janelas, sem decoração, apenas eu, uma cama, e uma porta,  ouvi a está voz de um arcebispo suntuoso e elegante, que me fazia companhia. Ele era meu único alívio de solidão. Curioso, ele já me alertou:

"O excesso de perguntas é o que leva o homem a loucura. A única resposta que precisamos, está em Nosso Senhor Deus. Todas as perguntas devem partir dele, e todas as respostas levam a ele, pois escrito está que Ele é o Alfa e o Ômega,  portanto tudo veio Dele e  tudo volta a Ele."

Dito isso, o arcebispo suntuoso desapareceu como uma nuvem de poeira, e se sobrou dele alguma coisa, foi o desconforto alérgico na respiração. E como se fosse fruto da minha imaginação,  não mais o escutei.

Mas havia diante de mim aquela porta. Era simples, de madeira, e maçaneta de ferro, lisa, sem ornamentos, sem enfeites, sem detalhes. Apenas uma tábua que separava um espaço do outro, o único obstáculo que me confinada neste pequeno cômodo de 3 x 3.

Não era a ganância ou a luxúria,  ou tão pouco a soberba que me tentavam. Não era a preguiça,  ou a gula. Não era a avareza, e não havendo ninguém além de mim, não era também a Ira. O que me tentavam naquela porta é o oculto oitavo pecado, que se subtrai em todos os outros, que é a curiosidade. 


Porém este é o pecado das sutilezas, que está debaixo dos lençóis de toda história da palavra do nosso Senhor. Antes que a curiosidade fosse atinada, o medo é dado de presente como exemplo.

Eu desejo abrir a porta,  mas sem que ninguém me dissesse, sou povoado por imagens de sofrimento e horror, caras retorcidos em desespero enquanto são queimadas pelo fogo eterno e mutiladas pelo sadismo dos anjos caídos que equivocadamente seguiram o maravilhoso Lúcifer em sua promessa do Paraíso.  E eu via o próprio rei dos demônios se deleitando com meu sofrimento, enquanto três outros demônios me devoravam as entranhas, comigo vivo, num berro de dor e incompreensão, implorando a Deus pelo perdão de ter aberto a porta.

Tão logo, o quarto se abriu em chamas, em dor, em um calor que me azedava o estômago como ácido. Tudo era verde, amarelo, vermelho e vinho, e o cheiro era de podre. Porém vencido pelo medo, ergui o punho e evoquei o Salmo:

O Senhor é meu Pastor e nada me faltará!

Fechei os olhos e abri a porta. Chegando no outro lado,  não havia nada. Apenas um outro cômodo idêntico ao anterior. O arcebispo parecia não se estar ali, e não dava sinal de que ia ter comigo de novo. Sozinho, nunca me senti tão amparado. Meu coração batia suave, e meus olhos enxergavam sem precisar da luz. 

Dando meia volta, notei que neste novo cômodo havia também uma porta, idêntica à anterior, que me conduzia a outro cômodo, com uma porta idêntica à anterior, e assim por diante,  e outro, e outro, e os espaços dos cômodos se ampliavam mais e mais, e o som da minha respiração fazia eco, o ar era mais puro e mais fresco.

Quando cheguei ao que parecia o último cômodo,  percebi o quanto estava velho e cansado, e percebi que havia um outro rapaz, que lembrava a mim mesmo quando era jovem. E a mim disse:

"Senhor, estou sufocado aqui neste cômodo. Quero abrir a porta porém tenho medo."

"Pois não tenha medo menino, mas não devo dizer se deve abrir a porta."

"Como não deve dizer?", disse o rapaz, "Não é o senhor como Deus?"

Refleti por um momento a respeito das palavras do rapaz e disse, despretensioso:

"Devo ser um pouco Deus, um pouco diabo. Não sei se sou pouco mais que homem."

Dito isso, o menino disse que estava sufocado. Medindo o espaço com os olhos, parecia ser de 33 x 33.

"Meu filho acredite,  seu cômodo é bem mais amplo que o meu"

Tomado por um impulso de coragem, o garoto se foi. 

Deitei ali mesmo, e morri ali mesmo, sem mais o receio do que poderia ser, deixei minha alma naquele lugar, me despedi do arcebispo, de Deus, e de Lúcifer, e seguindo adiante, cômodo após cômodo, leve como o ar, um espírito guia do coração dos desafortunados e perdidos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Tua Palavra

Palavras como fios E teus dedos costurando Um caloroso manto Para minha sombria alma. Palavras, que como pão Desta tua fome tão antiga Onde cada sílaba que canta Vira a ceia da minha calma. Palavras, como tuas mãos Que quando escreves meu nome Eu sinto O calor do teu gentil enlaço. Palavras como a brisa A brisa que a mim veio  No alívio das noites infernais Na doçura dos teus braços. E se ousa um dia duvidar Da força daquilo que escreve Lembra: O mundo que é só trevas A vida que era nada Tudo começou, até amor Pela Palavra.

Sacrum Putridaeque

  sacrum putridaeque "Animae exspirant, redire nolentes... Sed redeunt in sudore, dolore et metu, formam suam relinquentes." ✝ Invocatio Sacroputrida: Vox Ultima Ex Reliquiis ✝ Substância em ardência Como que em condenação Ao inferno da tua ausência. De seu cílio cai o lastro Da aurora poma aberta Afligida ao omisso mastro. Minha boca sente a míngua Pela privação do tato Da oração com tua língua. Numa parte sem ritual E eu aqui que só me encontro Do meu gozo sepulcral O meu tédio, meu remanso Invocatio sacroputrida Sem perdão e sem descanso! Ora em mim sem castidade Faz-me diário do teu ímpeto, Sem decência ou piedade! ================================================== Invocatio Sacroputrida: Vox Ultima Ex Reliquiis Substantia in ardore Quasi damnationis Ad infernum absentiae tuae. De cilio eius cadit onus Aurorae pomum apertum Afflictum ad mastum neglectum. Os meum sentit inopia Privatione tactus Orationis cum lingua tua. In parte sine ritu Et ego hic solus invenior Gaudii m...