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O Homem de Areia

Acordo tossindo, no meio da rua, engasgado com meu próprio sangue. Uma saliva vermelha escorre pela minha boca e mancha as minhas roupas, enquanto tento buscar o ar que me falta. Minha vista turva sintoniza gradualmente o mundo ao meu redor. A tela da realidade toma forma e aos poucos onde me encontro. Estou cercado por uma pequena multidão, todos eles absorvidos pelas suas tarefas do dia a dia.

Um casal de idosos, indiferente ao resto do mundo, discute as contas da casa. Um homem corpulento e desengonçado procura freneticamente os resultados dos esportes da semana. As crianças correm pela casa, ignoram os meus apelos, até mesmo quando se aquietam para assistir TV ou os intermináveis vídeos do celular. Várias moças fazendo suas unhas e comentando sobre o calor quase insuportável do dia. Um casal dança sensualmente atrás de uma árvore, aproveitando-se da pobre luz. Os senhores no bar jogam cartas e contam suas histórias como moeda de troca. Um bêbado cambaleia e parece ser o único genuinamente feliz, e o único genuinamente sozinho.

E vejo o que apenas parecia impressão, vindo em minha direção, lá na distância da rua, o homem de areia, muito semelhante a mim. Ele tem o meu andar, o meu rosto, os meus cabelos, os trejeitos das minhas mãos, do meu olhar e da minha forma de se sentir dentro das coisas. Caminha lentamente, hesitante, como se não tivesse certeza do chão que está pisando, deixando para trás resquícios da areia que soltas dos sapatos, inseguro da trilha que está tomando. Olha em volta, para e faz perguntas sobre o caminho. 

O homem de areia que vem em minha direção sabe para onde tem que ir, ele sabe que deve seguir em linha reta, porém, ele é um excelente ator, ele finge, ele segue tortuoso e dissimula que não sabe que eu estou ali no chão, sentado, resgatando a respiração de uma tosse seca e ensanguentada. Ele é uma cópia perfeita dos meus defeitos.

O homem de areia pega e olha para um mapa que carrega em suas mãos, aponta para os pontos de referência, respira fundo para se recuperar do cansaço, fecha os olhos, conta os passos que deu, olha para frente e para trás, e para frente de novo, até que enfim, depois de muito escárnio se chega diante de mim. Estou perplexo pela semelhança, pois eu não sabia que apenas pela força das palavras, poderiam existir tantas cópias distorcidas de mim.

Minha tosse enfim para. O homem se põe de pé diante de mim e me encara longamente, estudando todos os detalhes do meu rosto, memorizando cada parte que foi levada pelo tempo. Ele procura buscar a semelhança daquele rosto feito de areia, cuja ventania o defaz como dunas num deserto em eterna transição. Enfim o homem pega em seu embornal uma máscara idêntica ao meu rosto, e diz:

- Tome, pegue isto. Para que use amanhã. Amanhã pegarei de volta, e amanhã te trarei outra. Não finja surpresa, você sabe que é assim desde que você nasceu.

Todas as pessoas, que antes estavam tão absorvidas pelos seus afazeres também param para testemunhar a cena,  aguardando eu dizer alguma coisa para o homem de areia. Estou mudo e perplexo, mas não sei bem o que dizer, as palavras me faltam, e eu sabia as palavras, elas estava todas aqui, mas elas me faltam, porque não há palavras que possam descrever o que estava me acontecendo. E no fim das contas, eu sabia que as palavras me faltariam. Noto que a multidão balança suas cabeças reprovando meu silêncio, mas é que eu realmente queria poder dizer alguma coisa em um momento como aquele. Naquele momento, e em muitas vezes como aquela, eu realmente não sei o que dizer.

O homem de areia apenas sorri e me toca o ombro, como a um velho amigo que diz adeus e promete que voltará logo. Por algum motivo este toque me traz conforto, me traz uma vontade renovada, e me traz um vislumbre de felicidade. Ele volta a caminhar, desta vez, andando para trás, e dá exatamente a mesma quantidade de passos até retornar ao mesmo lugar de onde estava. E novamente eu sinto na minha boca o gosto do sangue se engasgando e uma outra tosse violenta. 

Como que as pessoas não percebem que ele é feito de areia ou questiona sobre sua consistência? E me demoro alguns segundos para perceber que todos são feitos de areia, inclusive eu. Olho para minhas mãos se desfazendo lentamente e retomando sua forma, que tudo ao meu redor é também feito de areia. As casas, as árvores, os bancos de praça, os ônibus, os enormes prédios, as estações de trem e de metrô, as universidades e as fábricas, os fios de fibra ótica da internet, os computadores, aviões, e principalmente, a minha voz. Todos somos feitos de areia, e todos temos as nossas cópias de areia.

O bêbado cai, e é quando um velho senhor se aproveita e lhe arranca um pedaço de sua costela dando de alimento a mulher nua que ali passava, ignorando os apelos desesperados do miserável em seu infortúnio. O homem corpulento é recebido por um homem menor, sem uma das pernas, eles se abraçam e se desintegram em uma única figura. As mulheres fazendo suas unhas se desintegram em versões menores de si mesmas, dando lugar às crianças que antes corriam pela casa, e agora se prostram diante das mesas fazendo contas sobre o quanto devem de dinheiro no fim do mês. Os idosos dão lugar aos pássaros, às árvores, ao ar que respiramos, e ao alimento que comemos. Todos somos feitos de areia, e todos temos as nossas cópias de areia.

Quando será que o meu homem de areia vai voltar para me ajudar? Ele disse amanhã, mas devo esperar? Será que vivemos o mesmo amanhã ou será que eu e todos a minha volta sentem o amanhã de forma diferente? Ele vem, ele veio ontem, ele voltará, e é assim  que segue a semana, com ou sem mim, é assim que segue a vida.

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