Pular para o conteúdo principal

Crônicas do Não Saber 3

Enquanto o café fumegava, eu via, diante dos meus olhos, a dança aleatória do vapor, um vapor fino que só era possível existir por causa da luz que o trespassava, diante dos meus olhos. Eu via o café fumegante diante de mim enquanto segurava uma xícara na altura do nariz, parado e imune ao mundo exterior. Não estava tão imune ao mundo externo, mas era como pretendia estar.

- O que está fazendo? - perguntava uma voz. Vê que eu notei que era apenas "voz"? Podia ter dito "me perguntava um som" e assim, seria ainda mais enigmático, mas na minha consciência já estava bem estabelecida a ideia de que palavras só podem ser emitidas por vozes, e além do mais, eu estava absorvido em mim mesmo com tamanha distância do mundo, como se houvesse cavado um buraco em mim e me escondido, enquanto meu corpo agia apenas como um recipiente para a normalidade da vida cotidiana. Porém eu deveria estar fazendo algo atípico, pois alguém usava a voz como um gancho que me arrancava de dentro de mim mesmo. Não era uma medida de salvação, mas uma medida de "volte pra cá porque você não deve ficar cavado dentro de si mesmo nesse buraco que você cavou sem perceber e que te oculta do resto do mundo, mesmo com todos te vendo". A voz, conforme eu disse, não era nem feminina e nem masculina, era só uma voz, e eu não saber diferenciar o gênero só me causou espanto, pois tamanha era a minha absorção.

- O que está fazendo? - desta vez a voz tomou a forma de onda sonora e eu pude reconhecer uma voz feminina, mas ela reverberava como a um eco, como se eu estivesse preso dentro de um imenso cômodo vazio que faz com que os sons soem mais elevados e preenchedores que de costume, a ponto de sentirmos o envolvimento físico destes sons, como um abraço, um único abraço de consolo em um espaço tão vazio que nos esconde do resto do mundo.

Se você prestou um pouco de atenção em suas aulas de física, deve se lembrar que os sons são ondas, e elas poderiam  quase ser palpáveis e palatáveis se não fossem tão intangíveis e sem forma. Reparei que a dona da voz me olhava com uma curiosidade hostil, então senti que deveria responder:

- Estou apenas pensando. - respondi com meu tom de voz sem variação melódica. Essa falta de variação expressa tédio ou desinteresse, mas no meu caso só estava expressando absorção e desprendimento. Não que eu expressasse de propósito, apenas aconteceu, como muitas das coisas que acontecem na vida de forma tão automática e mundana. Somos tão acostumados com o mundano que nem mais sentimentos aquele desespero por explicações, elas são porque são. Mas a falta de variação melódica parece ter aborrecido a dona da voz que me perguntou, porque a partir daí ela pareceu mais inquisidora.

- E no que está pensando? - foi a pior resposta que eu podia ter dado, pois a moça, a garçonete do outro lado do balcão (verdade, esquecia até mesmo de que estava dentro de uma lanchonete) me encarava com reprovação e ainda mais curiosidade. Estou apenas pensando? Talvez, pensamos em tudo, mas declarar assim, sem mais nem menos, e sem ao menos uma pretensão petulante, dava a entender que eu era mais importante do que normalmente seria. Mas eu não sou, e jamais pretendi ser. Nem sei mesmo se um dia pretender eu ser algo, mesmo já sendo, mas cabendo na definição que daria forma à minha passagem por este mundo. E pra falar a verdade, pensando melhor agora, não estava pensando em nada em específico.

- Em nada específico.

- E vai tomar esse café? - a indagação curiosa da garçonete não me estranhava, eu estava já fazia muito tempo parado naquela posição. Estar parado numa posição que desperta suspeita pode causar nas pessoas ao redor uma necessidade incômoda de se fazer perguntas. E ainda sem me dar conta de que eu era a incoerência do lugar, demorei um tempo pra sair de mim e voltar ao mundo real onde havia uma garçonete me encarando com uma curiosidade quase hostil e procurando saber porque eu não estava bebendo meu café. Também reparei pelo reflexo do alumínio espelhado entre a garçonete e a chapa de sanduíches da cozinha, que os outros clientes da lanchonete me olhavam e cochichavam entre si. Sem querer chamar atenção, no meu silêncio totalmente absorto, acabou por acontecer o contrário. Talvez a voz inquisidora da garçonete tenha sido a responsável por isso.

O que teria sido? Teria eu ficado em um silêncio tão absoluto a ponto de que ele , o silêncio, se tornasse uma força magnética que atraiu a atenção das pessoas para mim? Eu comecei até mesmo me perguntar se as pessoas podiam ouvir os meus pensamentos, e suei frio com essa possibilidade, meu coração palpitou e tudo. Mas logo em seguida eu me acalmei, afinal, eu não devo ser o único que tem coisas das quais eu poderia me envergonhar, pois se fosse sim, só a minha casa teria necessidade de portas. Também pensei na possibilidade de que a ideia de silêncio não é necessariamente a ausência de ruído, mas um ruído por si só, capaz de causar essa sensação magnética nas pessoas, o que acaba que elas olhem pra você.

Talvez eu devesse ter me movido mais, ou olhado mais para o meu celular ou para a TV, ou quem sabe reparar mais mas pessoas ao redor. Ter ficado em estática absoluta, com o olhar fixo no vapor fumegante da xícara de café foi o caso da minha condenação. Eu cheguei até mesmo a procurar pelas paredes um aviso que poderia dizer: proibido ficar parado na mesma posição por muito tempo; e depois confrontar a garçonete, pois afinal, era proibido ficar parado na mesma posição por muito tempo? Não, não era. De certa forma, vivemos em um mundo de lei escritas e de leis silenciosas. Eu comecei a pensar que é difícil confrontar aquilo que não existe.

Lembrei de outro dia quando estava com problemas com o meu sinal de internet, e decidi ligar no serviço de atendimento ao cliente. Uma ligação para um atendente de telemarketing, essa sendo uma das invenções mais urbanas e solitárias da geração passada. E foi ligação torturante de mais de dez minutos falando com uma gravação até finalmente conseguir encontrar uma voz humana que pudesse compreender a minha angústia: eu preciso da internet, eu trabalho com internet, estou perdendo dinheiro se não tenho minha internet. Eu quis dar um ar de importante, mas era mentira. Eu só queria assistir minha série no streaming, entrar no YouTube, talvez, ou ver meus filmes pornográficos, porque tinha acabado de terminar um namoro e existia muita tensão para aliviar ainda. De qualquer forma, eu não consegui conversar com ninguém sobre a falta da minha internet por mais de dez minutos, e aquilo me angustiou.

A garçonete na minha frente pedia apenas por uma razão lógica pelo meu silêncio, porém são coisas que fogem do meu controle, ou do controle da normalidade da vida. De vez em quando eu vou me incomodar com a pessoa parada na frente de uma xícara de café, e sua absorção vai me sugar para dentro daquele silêncio a ponto de me sufocar talvez. Não é possível saber.

No fim das contas, acabei virando o restante do café da minha xícara, paguei a conta e fui embora. Precisava ir trabalhar.

A garçonete pegou a xícara com desconfiança, limpou o balcão e agradeceu.

Postagens mais visitadas deste blog

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.