Pular para o conteúdo principal

Descascado

Não são só palavras que me lembram você. Nem o seu cheiro, nem a sua voz, nem o seu olhar. Nem mesmo você me lembra você mesma.

Uma folha caindo me lembra você. Uma música qualquer me lembra você. O som de um carro passando, ou de um copo sendo lavado na pia. Também me lembram você a noite alta, fria, porém confortável como o colo da minha mãe. As estrelas opacas, ofuscada pelos postes de iluminação. A vontade de fugir daqui pra sempre, isso me lembra muito você. As frutas na fruteira, o começo da chuva de verão. A dor no peito e a dor de estômago me lembram você.

Preciso de coisas que me façam te esquecer. Até a minha imagem me lembra você.

Não vou mentir pra mais ninguém e menos ainda pra mim mesmo. Que uma árvore verdinha me lembra você. Mas uma maçã descascada também me lembra você.

O que cai primeiro? A folha da árvore ou a maçã da macieira?

E quando cai foge pra sempre. Eu piso na folha que é mais fácil, e isso a faz se machucar. Pisar na maçã é mais difícil, ainda quando escorrego e tombo, sinto a dor terrível da queda e não consigo levantar.

================
Esse texto é pra você e pra você. Minha folha verde e minha maçã descascada.

Postagens mais visitadas deste blog

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.