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Letícia Setubal Damasceno

Ah, se minhas letras tivessem cor!
A cor dos meus desejos, das impulsões.
Tivessem a cor dos dedos, e apontassem a direção dos meus segredos.
E te mostrassem a direção dos meus braços, das minhas pernas.
Das minhas pernas paradas nas esquinas.
Que me levam para duas direções
 - vou para onde primeiro me puxarem -

E se elas tivessem voz...
A voz de gritar
Alto
Máscula
Áspera
Rouca
A máxima expressão de minhas paixões
A dor máxima do frio das esquinas
Dos meninos das meninas
O máximo frio dos velhos lençóis e colchões

Se elas tivessem o cheiro azul das camas dos hospitais
O gosto cinza das guias das avenidas
Os sons amarelos das alamedas aformigadas
O toque branco, fosco, da luz espelhada no chão noturno.

E se ainda, e por último, por enquanto
Tivessem calor!
O abraço brando eriçando os pelos!
Ai, os pêlos! Hum, os pêlos!
E a maciez das madeixas me cobrindo o corpo
Tapando-me o sofrimento
Preenchendo-me o vazio
Por fora e por dentro
Ao menos neste momento.

Enquanto o sangue corre firme
O braço e o coração pesam
Os olhares aqui, porém lá, que lesam
Violentos são.
Duros, macios, viscosos, entre duas abas
Escorrendo língua abaixo
Percebo que minhas letras não podem falar
(mas se pudessem)
Eu não voltaria para a febre escura
Das escadas dos apartamentos...

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Bucolismo

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O Lago

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