Pular para o conteúdo principal

Através do Espelho e o que vi Lá

Poemas perdem o sentido com o passar dos tempos. Perdem o sentido para quem escreveu, pouco depois para quem leu, e pouco depois perdem o sentido no seu contexto. Nada mais natural. Eis uma prova não empírica de que as coisas realmente se transformam... e ao mesmo tempo não! Um poema escrito há cinco séculos pode conversar diretamente com os meus sentimentos atuais. As pessoas são todas iguais em essência, o que muda é a personalidade. Somos iguais, mas é perigoso encontrar vasta semelhança entre nossos semelhantes, porque todos nós sentimos a necessidade de ter identidade. Em um papo com minha irmã esta noite, ela se queixou de que esse mundo está muito igual. Estamos perdendo o assunto, perdendo a direção. Aliás, parece não existir mais direção. Seria como se já houvéssemos alcançado algum certo limite, despejamos tudo isso no chão tal como um vasto mar, e agora estamos nadando desorientados sobre ele, tentando continuar, seguir adiante. Mas e se não houver mais para onde seguir? Já preenchemos todas as lacunas desse mundo, e nada mais parece ser novidade.

As respostas? Ainda não as tenho, mas o pouco que posso dizer é que isso é uma coisa muito individual. Eu apenas joguei a questão. A resposta se dá quando se olha no espelho.


Através do Espelho E o Que Vi Lá

Hoje escrevo assim, sem compromisso.
Sem querer saber muito do nada.
Obrigado
De nada
Escrevo um pouco sem querer muito, e não querer ser mais ou menos.
Apenas ser menos.
Mostrar que sou menos.
Palavras desconexas como aprendi
Com alguém que não posso crer.
Abrir a porta do tribunal e descobrir que ali está um belo jardim.
Cavar um buraco e plantar uma árvore,
E que ao invés de semente,
Devo usar do conteúdo científico químico muito perigoso para a saúde.
Escrever e reler o escrito,
Tentar entender o que escrevi.
Assim é melhor que me ver no espelho.
Escrevo hoje, tentando empurrar goela abaixo de quem lê
Uma parte de meu narcisismo de escritor.
Mostrar um pouco que a roda roda e empaca.
Mas pacas!
O que fazer?

Quero não ler notícias, só hoje.
Não quero pensar no futuro.
Quero não planejar o dia,
Nem a noite.
Nem o amanhã.
Só hoje não quero nada.
Quero sair de casa sem carteira, sem roupa, sem cara, sem nada.
Quero que o sentido seja íntegro e único.
Não quero nada.
Deixa eu ir.
Solta a minha mão e deixa eu ir
Deixa eu caminhar em direção alguma.
Não me diga pra onde ir.
Não me diga por favor.
Não me diga para fazer, não me diga para querer.
Não me diga que não posso escrever:
- Me deixa caminhar em direção alguma.
Através de seus olhos eu vejo o que eu deveria ser.
E através dos meus eu vejo o que eu quero ser.
Deixa eu beber.
Me deixa caminhar, cair, chorar e me machucar.
Deixa-me
Me deixa
Deixa em
eixadem.
Deixa eu me aceitar como sou.
Me deixa.

Hoje queria escrever por escrever.
Mas eu não me permiti não querer.

Hoje queria escrever pra você.
Queria escrever por você.
Hoje eu queria ser você
Hoje eu queria você
Hoje eu você
Hoje você
Amanhã eu
Mas não é, não vai ser e não será.
Porque hoje
Hoje eu queria você ser eu.
E ser o que todos queriam ser
O eu em você.
E viver em paz.

Mas eu sou apenas eu.
E os outros.

Hoje escrevo assim, sem compromisso
Sem querer nada além disso
Sem desejar algo bonito
Sem rimar isso com aquilo.
Pois se algum dia houve momento
Que a rima de encantamento
Combinasse com vida sem sofrimento
Esse dia não viu ainda o tempo.
Por isso hoje
Hoje escrevo assim, sem compromisso
Sem rimar aquilo com isso
Sem rimar nada com compromisso.
Sem querer nada com compromisso.

Eu queria hoje
Estar presente na melhor das lembranças
De quem hoje não posso ser.
De quem hoje não querer.
Crer.

Hoje queria saber
O quão forte eu sou
Ou fraco deixei de ser
Se medir com esses dois
Quantidade do quanto
Sou.

Hoje queria saber que sou humano.
Hoje queria saber que humano sou.
Hoje queria saber pra onde vou.
Hoje vou saber pra onde queria.
Hoje queria ir pra onde sei
Saberia querer pra onde hoje irei?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Chamas de Yemanjá

Almíscara penumbra O ar que pesa em febre As sedas ardem chamas Verte-me a maré da criação. Recebo em exortação As faíscas que te explodem sob a pele  Cubram-me, estrelas cadentes. Ergo-te minha aberta taça Largo anseio a coletar Neste cristalino cálice As pérolas de deleite mar. Perfeita ondulação Com um arqueio para trás Transmuto em Eva Rosa aberta das Mil Noites Das mil insaciáveis noites! Sem medida. Deixe que caiam Que cerquem-nos as brumas Banham a alma o noturno orvalho Ouça este canto É a beleza do profano hinário. Neste sonho vivo Altivez de devoção cutânea  Rito ao lúgubre exorcismo  Governa e acata simultânea. Sorve dominada a benta água Aceita a nativa incumbência  A viva e infinita exultação. Quente e pesada Cai a noite Salto na cidade inteira Soltas rubras copas Sem medo Reflexo brilhante das estrelas Embebe o lacre dos segredos. Quente e pesada Em açoite Salta a cidade inteira Um, dois, três, quatro Brindem ao pórtico Abraçados às cortinas Rasguem o m...

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Dez Mil Dias

Certo dia foi assim Peguei o ônibus Sentei na calçada fria Esperei falarem comigo Deixei a mão suspensa, em vão E em um gole, matei minha sede Para no segundo seguinte Você não estar mais aqui.  E soube certa vez Que não estava mais aqui Às vezes Quem não está Parece nunca ter partido. Te via na luz Te via no amanhecer Te via Te vejo Na minha vontade de morrer. Tua voz que parei de ouvir Ainda soa para mim. O teu perfume de ternura Sinto em todo lugar O teu semblante de aurora Vejo-o nas pontas dos dedos. E sobreponha a  eternidade Entre o que plantou em mim E o fim do mundo E você ainda estará aqui. É assim mesmo. Porque  Ante a catástrofe  A confusão A existência O desamor e a desilusão A tristeza e o rancor As mágoas e a reclusão Três palavras Quatro sílabas A minha incapacidade humana de decifrar A dissolução da minha angústia: Eu amo você. 📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿 Tudo isso começou no dia 06 de Maio de 1998.