Pular para o conteúdo principal

Carta Aberta Ao Conservador

Não consigo entender de onde vem o ranço que a classe média sente por saber que há pessoas que recebem um benefício do governo, e que é por direito delas, algo que está, ainda que mal difundido, previsto na Constituição. Por vias de buscar este entendimento, escrevo-lhe uma carta aberta, querido conservador.

Aqueles que são beneficiados pelas bolsas assistencialistas não são os ditos excessivamente pintados nas anti-propagandas da oposição, tipos que se beneficiam do dinheiro dos impostos, e que abusam por achar que não tem que trabalhar. Sim, há a realidade de pessoas que optam por viver apenas da bolsa do que de oportunidades de trabalho, mas para muita gente isso é uma coisa difícil de compreender. Para você, cidadão, que está privilegiado em um ambiente de trabalho confortável e recebe um salário que pode ao menos ostentar a sua futilidade, esta compreensão só será atingida quando a sua perspectiva se ampliar para além do refeitório da sua empresa e de seu restrito círculo de amigos que pensam da mesma forma (que por experiência própria, enxergo como ceder à pressão social). Você não entende o que é o sofrimento e miséria de milhões de famílias que vivem na incerteza do amanhã por estar muito ancorado no seu raio de visão limitado. É simples criticar de barriga cheia, e dizer que existe a preguiça, a vagabundagem de ir a busca de condições melhores de sobrevivência.

Mas surge outra máxima da sua classe média conservadora: “eu me esforcei para chegar onde cheguei, por isso acho injusto.” Certo, esforçar-se em uma região metropolitana como São Paulo ou Campinas, com acesso à escolas, bibliotecas, livrarias (cara$ e de público re$trito, mas com ace$$o), é completamente diferente do esforço que uma pessoa teria que fazer em lugares como Lagarto, Vitória da Conquista, Ribeira do Pombal, Feira de Santana, etc. Permita-se fazer uma reflexão: com duzentos reais, tendo um livro custando em média 50 reais, opta pelo leite ou pelo livro? Hum, você me diz das bibliotecas públicas. Então eis um novo e espantoso dado (ao menos para mim que gosto de ler): pesquisas do Ibope (sim, Ibope) confirmam que existem mais bibliotecas públicas na cidade de Buenos Aires do que bibliotecas e livrarias juntas em todo o Brasil! Em outras palavras, existem cidades que num raio de 300 km não há rastro de livraria ou biblioteca. Você consegue imaginar este panorama? Ah sim, e para quem não sabe, Buenos Aires é a capital da Argentina. Não posso me esquecer de que escrevo um texto diretamente a pessoas moradoras de um estado que está sob o governo que está governando atualmente (só não quero ser direto demais, por isso a redundância).

Aos filhos dos imigrantes que vieram às grandes capitais durante a época da massiva industrialização do sudeste (o famoso Êxodo Rural), estes que hoje batem orgulhosamente no peito e dizem que venceram à própria miséria de sobrevivência, aos filhos, é vergonhoso não entender que as capitais onde moram não estão em pé de igualdade e benefícios com os lugares de onde vieram seus pais (pasmem, militantes do conservadorismo) alguns lugares onde ainda sequer sabem o que é ter acesso livre à internet, sem saneamento básico, sem coleta regular de lixo, sem acesso à água canalizada, a mesma que cai facilmente da torneira de sua casa quando você a abre (porque estes lugares são assim? Bem, a resposta lhe seria fácil se não se ocupasse tanto do seu próprio umbigo). Estes mesmos que se esquecem das origens de seus progenitores, ou não fazem questão de conhecer, prostituindo sua própria identidade étnica. Ou aos excessivos e pseudo-neo-fasci-nazistas identificados por crachás, repletos de preconceitos disfarçados com uma civilidade repulsiva.

Trabalhar por salários miseráveis, sem os benefícios que uma IBM ou uma BT (as empresas em que já trabalhei) ofereceriam, debaixo do Sol, exposto a todos os tipos de insalubridades, e como se não bastasse, a todo tipo de preconceitos, sem transporte público (o que no caso de São Paulo é um caos) sem transporte fretado (aqui a coisa fica mais pomposa), se algum conservador se submeter a isso, provando sim todo este esforço alienígena que eu não consigo ver na maioria, eu retifico todo o meu discurso. Se houver a mesma sustentação de discurso paulistano, mas num ambiente social e econômico como os das cidades mais esquecidas das regiões Norte e Nordeste do país, com a limitação de que estes lugares oferecem (sem escolas, sem hospitais, sem universidades, sem shopping centers, sem nada), eu retifico todo o meu discurso. Criticar e repudiar o assistencialismo do governo debaixo de um ar condicionado é estupidamente conveniente e egoísta.

Pois, senhores, saibam que não é São Paulo quem sustenta o país, mas acontece totalmente o inverso. Todo o país sofre para sustentar a pompa da classe média reclamadora e convervadora. Saibam senhores, que trabalhar por mais de 8 horas por dia, no ritmo que as corporações exigem, não é algo louvável, é suicídio em longo prazo. Saiba que ser workaholic não é um mérito, mas a conseqüência de um trabalho alienado, que eu compararia a um alcoholic. Se você pensa que o assistencialismo é o culpado pela sua não promoção, perceba que você não é promovido porque você não é promovido, simples assim, com uma definição semanticamente nula. Na corporação o Senhor Feudal é o Diretor/CEO/ Dono da Maior Parte das Ações /Presidente da empresa, o seu chefe é o nobre vassalo sob os serviços do Senhor Feudal, enquanto que você, caro conservador, não passa de um plebeu, e a sua promoção tiraria uma parte ridícula da fatia que o Senhor Feudal recebe à custa do seu orgulhoso trabalho sofrido, e isso não é culpa do assistencialismo, é culpa da sua própria postura alienada com o seu ofício. Mas eu lhe compreendo, todo mundo precisa sobreviver, até mesmo você e a sua família.

Até onde alcança os domínios da hipocrisia conservadora, os turistas das regiões miseráveis (ou quem nunca sonhou com Porto de Galinhas ou Porto Seguro?)? Como turistas, a miséria lhes é algo indiferente. Se não consegue entender o que digo, vou lhe dar um guia para a compreensão. Faça um turismo em seu próprio cérebro, e perceba o quão miserável está aquela parte em que lhe falta uma visão de mundo mais ampla. Esqueça o carro do ano que você quer desesperadamente trocar pelo que comprou ano passado, alimentando uma indústria porca e contribuindo para o não investimento em transporte público e para com os predadores ambientais. Esqueça por um instante o iPhone, produto que a cada vez comprado, justifica a escravidão corporativa de crianças chinesas sob condições alarmantes. Esqueça por um minuto o seu tênis Nike, que foi costurado por algum indianozinho ou angolanozinho com Tétano, ou correndo o risco de contrair a doença. Esqueça as oportunidades de emprego, pois você já tem um bom emprego (você consegue comer e pagar suas contas, isso, na situação do Brasil, é um bom emprego). Se lhe causar estranheza, é porque está favoravelmente comparável à sua estranheza com a miséria dos territórios do seu próprio país. A partir desta justificativa, já podem ao menos conseguir a minha compreensão, pois o que lhe sobra de miséria de pensamento, é o que falta de esperança de sobrevivência nas famílias mais pobres da nossa nação.

Postagens mais visitadas deste blog

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.