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A Alienação Social em Ensaio Sobre a Cegueira

A alienação social

O presente trabalho tratará da questão da alienação social contida no romance Ensaio sobre a cegueira de José Saramago, e o papel que esta alienação desempenha na sociedade contemporânea. Mas antes de entender o papel a que esta alienação se dá na sociedade, é importante entender sob qual prisma está significada a idéia de alienação. Uma vez que se trata da alienação dentro do meio social, buscaremos a fonte de sua definição numa visão sociológica. A partir daí, com base na definição de alienação utilizada, será investigada a maneira como ela se expressa e o que se pode extrair dela na obra de Saramago.

Sob uma ótica sociológica, a alienação viria a ser uma suposta ignorância individual acerca dos problemas que envolvem a sociedade, ou um isolamento em relação aos demais integrantes do meio social. Estes problemas podem ter origem no próprio agrupamento social afetando aos indivíduos, ou pela via inversa, surgindo de um indivíduo e afetando o grupo social em geral. Utilizando de uma visão de Émile Durkheim, pode-se definir alienação como a inconsciência individual mediante os fatos que envolvem o grupo em que aquele indivíduo está inserido. As conseqüências deste isolamento vão depender do quão influente este indivíduo é no meio social.

Entretanto, extraindo já uma compreensão da obra, se pudermos entender que a sociedade que Saramago tece também pode ser um dos personagens do livro, percebe-se que a alienação não atinge unicamente aos indivíduos, mas pode ser um problema que acomete grupos inteiros quando estão dispersos por uma idéia imaginária que os anestesia da realidade.

A metáfora da cegueira
O caráter simbólico da obra de Saramago constitui uma posição de investigação dos problemas universais das comunidades humanas, e por essa razão, os assuntos que a sua literatura possibilita nos debates críticos podem ser inesgotáveis, uma vez que se espelham também na infinda dificuldade humana de se deparar consigo mesma.

Em Ensaio Sobre a Cegueira, logo de início, enquanto um homem aguarda em seu carro pelo sinal verde do semáforo, repentinamente fica cego, duma cegueira que é descrita como um mar branco. Ao contrário do que se acredita da cegueira comum, que é escura, a cegueira de Saramago é caracterizada pelo excesso de luz. A partir deste evento uma sucessão de personagens vai ficando cego da mesma cegueira branca, um após o outro, seguindo uma lógica a partir do contato que o primeiro cego tem com as demais pessoas, fazendo-nos crer que se trata mesmo de uma epidemia de cegueira. Não fosse a exceção de a mulher do oftalmologista ser imune ao problema, teríamos pouco material para entender que a cegueira não se trata apenas da deficiência visual comum, mas de uma espécie de cegueira social, mental.

Conforme surgem os constantes casos de cegueira, o governo, acreditando tratar-se de uma epidemia, toma a medida preventiva de deixar os cegos sob quarentena no manicômio da cidade, isolando-os dos demais cidadãos, e tão logo, abandonando-os. A simbologia descrita nesse momento do romance trata-se da visão de Saramago sobre as diferenças que a maioria da sociedade determina, para definir onde estão os limites da normalidade versus anormalidade.

Temos a imagem de uma fatalidade que, partindo para um nível profundo de observação, com o desenvolvimento da história torna-se praticamente invisível ao leitor, não fosse a menção constante do autor diante do fator cegueira que acomete a todos os personagens, exceto um. E a partir desta visão quase ingênua da vida social, o esplendor da mensagem está contido no fato de que, com a anulação de um dos cinco sentidos, a condição de vida degrada-se a tal ponto e ao mesmo tempo é tão semelhante à realidade, que nos faz questionar até mesmo os nossos valores mais profundos.

Não se trata de dizer que é por causa da cegueira que as pessoas passam a agir sem o apoio moral do qual antes dependiam, uma vez que elas se vêem em condição de igualdade no tocante ao seu estado físico. Mas que, os resquícios de uma personalidade egoísta naquele modelo de sociedade ao qual foram submetidos, deriva ao caos, novamente, reproduzindo, mesmo diante da igualdade física, as mesmas estruturas da sociedade exterior. Apesar de confinados num manicômio, Saramago nos dá a perspectiva dos isolados sociais, e deixa evidente que, diante de fatores comuns, a anormalidade torna-se normalidade a partir do momento em que nos acomodamos com as novas condições de vida.

A metáfora da cegueira consiste em presumir que tal condição trata-se, na verdade, de uma postura egoísta e indiferente em relação aos semelhantes, e que o caos descrito ao longo do romance não é dedutivo, mas algo que já ocorre quando isolamos os grupos devido as suas diferenças. Não apenas por essa razão, diante deste fato fica implícito na obra que esta visão é parcialmente opcional, pois os cegos sob confinamento ficam no aguardo de uma ajuda externa, acreditando que a sua sobrevivência dependerá tão somente da compaixão de quem está do lado de fora.

Ao mesmo tempo, dentre as incontáveis idéias que podemos extrair da obra, pode-se afirmar que as atitudes inconseqüentes, o estado de degradação, fazendo-os todos retornar ao seu estado primitivo de sobrevivência, deixando de lado os hábitos comuns da vida moderna (ou contemporânea), sejam hábitos de uma polidez social, higiene e pudor, talvez salte tão claramente ao olhar do leitor pelo fato de os cegos, pensando estarem cegos, acreditem também que ninguém os verá fazendo o que estão fazendo, ninguém os verá agindo numa espécie de surdina; ocultos pela sua nova condição física, dando-lhes a ilusão de uma vantagem de obscurecer suas atitudes animais e a despreocupação com alguma vergonha ou justificativa, daí também as ações que nós julgaríamos demasiadas desumanas. E o ponto mais alto é que, Saramago desnuda tão completamente as suas personagens de qualquer defesa, deixando-as tão expostas às suas condições de vida mais naturais, que não importa o obstáculo que eles terão a sua frente, a moral social é arbitrária, e o que está em questão é a sobrevivência.

A questão das hierarquias e do poder

Uma vez confinados, os cegos passam a organizarem-se entre si, e a mulher do médico, sendo a única que é capaz de enxergar, doa-se o máximo que pode para auxiliá-los, sem deixar que se revele o seu segredo, de que é capaz de ver. A cada dia que passa mais pessoas que foram afetadas pela cegueira chegam ao local, e vão se acomodando com podem, à medida que o manicômio vai se tornando incapaz de acomodar tantas pessoas, e de acomodar as necessidades básicas de todos. Os locais que abrigam aos cegos são chamados de alas, e aqui se pode traçar um paralelo entre cada ala com a noção que temos de pátria.

A crítica de Saramago, nesse ponto, volta-se para as relações de poder na sociedade. A começar que ao chegarem ao manicômio, os primeiros cegos tentam se organizar como podem, escolhem um leito que lhe servirá de lar, tal como as sociedades primitivas onde cada membro escolhe um local para morar de acordo com sua conveniência, e ali permanece. Logo então surge a necessidade de um representante para cada ala, que, em nome da maioria, travará relações com os representantes das demais alas, numa espécie de diplomacia.

É questão de tempo para que as alas comecem a disputar entre si pela sobrevivência, e a partir da concepção que cada um tem a respeito da sua condição atual, justificam-se as atitudes arbitrárias, perversas para e contra si próprios, a fim de garantir vantagens individuais em relação àqueles que, por alguma razão, acreditam por si mesmos serem menos poderosos, evidenciados por uma submissão voluntária.

Uma das alas se sobressai às outras, que é a que onde estão os chamados cegos malvados, pelo fato de um deles possuir uma arma de fogo, carregada, e que simboliza e garante a sua dominação sobre as outras alas. A partir daí, os cegos malvados, aproveitando-se das ferramentas próprias de quem está na posição de dominador, permitem-se ao direito de exigir privilégios em troca da, não garantia, mas, autorização da sobrevivência das outras alas, deixando evidente, sem máscaras, que as relações de poder entre as sociedades, se dão através do medo e do autoritarismo, entretanto, ocultados pelos mais diversos mecanismos, dentre eles a moral e o acordo social, para serem citados. Através do seu poder, os cegos malvados começam a exigir tudo o que para eles podem ainda ser julgado de valor material, por mais que não façam uso disso, mas nessa relação de troca em que, aquele que detém o poder sempre exige um tributo pelo benefício que está sendo prestado. Não pode deixar de passar despercebido o fato de que as provisões dadas aos cegos, antes dessa hierarquização, vinha da parte do governo, que também exigia um tributo em troca da alimentação escassa dos cegos, talvez o tributo do isolamento, do esquecimento e abandono, para evitar o constrangimento nacional de ter de lidar com um acontecimento cujas raízes são desconhecidas.

E por mais que Ensaio Sobre a Cegueira faça uma total inversão da atual condição humana, percebe-se tamanha semelhança da ficção com a nossa realidade, diante da possibilidade de degradação total. Ainda assim, mais do que prender-se a uma crítica imatura acerca da individualidade ou do egocentrismo social, Saramago extrapola, a partir desta inversão da condição social, e mostra-nos, a partir de sua dedução, que a sociedade está presa a valores tão ultrapassados e desnecessários, cuja sobrevivência deixa óbvia que são frágeis e descartáveis.

Uma passagem em que está evidente a noção total da degradação humana, por assim dizer, é o momento em que, uma vez acabados os objetos de valor dos cegos, os cegos malvados passam a exigir que as outras alas enviem as mulheres para darem o corpo em troca da alimentação. Todos hesitam no primeiro momento, que após uma decisão final, optam por aceitar em razão da sobrevivência do grupo. Neste momento nada mais parece fazer sentido na sociedade que ali fora construída, os valores relacionados a fidelidade, moral, decência ou indecência, quando a situação torna-se crítica na escolha entre manter os valores e morrer com uma dignidade pouco significativa, condenando também àqueles cuja moral difere, ou simplesmente sobreviver.

O poder está simbolizado pelo mecanismo que, aquele que o detém, submete aquele que se deixa submeter, e numa fala simbólica, como se tivesse consciência da natureza finita do conceito de poder, a mulher do médico entende que uma arma de fogo, mesmo carregada, é inútil uma vez que todas as suas balas são usadas. Ao mesmo tempo, quando entende que a sua condição favorável poderia libertar os demais cegos daquela dominação injusta, acaba por matar o líder dos cegos malvados, dando inspiração para que outra cega ponha aquela ala em chamas, libertando a todos.

Conclusão: A cegueira voluntária e os novos caminhos possíveis

Ao saírem da quarentena, o médico, a mulher do médico, a moça dos óculos escuros, o primeiro cego e sua esposa, o homem com a venda no olho e o garoto estrábico, iniciam uma jornada juntos, e notam que a epidemia acometeu a todos na cidade, talvez no país inteiro e quem saiba até mesmo no mundo inteiro.

Caminham errantes em busca de um novo abrigo, e dali em diante percebem que sua sobrevivência depende da sua relação de troca envolvendo a solidariedade e o bem comum. Os momentos finais do livro revelam pela primeira vez uma postura dos cegos que se permitem conhecer uns aos outros, ainda que inominados, ainda que se denominando pelas suas funções sociais ou suas características exteriores, mas começam a ter uma relação baseada numa nova afetividade, ligados pela compaixão mútua diante de uma condição comum e já não mais sentindo-se diferentes um dos outros.

Abrigaram-se na casa do médico, e foi dali que após terem descoberto mais de si, tornaram a enxergar, um a um, retomando a consciência da normalidade, procurando desvendar os motivos da cegueira. E por mais que procurem investigar o seu significado e as suas causas, seja pelo castigo dos pecados cometidos, ou pela indiferença social, seja pelo excesso de egoísmo ou pela falta de solidariedade, as causas em si ficam a mercê de cada um. Longe de se permitir a um entreguismo total nas relações sociais, Saramago talvez através de um apelo singelo, representado e materializado na mulher do médico, atravessa as obscuridades da razão humana para nos atingir no âmago, e clamar por mais humanidade numa sociedade que está imersa em excessos desnecessários à sobrevivência.

O narrador, como que com uma brincadeira propositada, que manipula uma situação em prol de observar os resultados, fez da cegueira um fator metafórico, e através de suas personagens tão comuns à nossa vida contemporânea, joga ao chão toda a arrogância, petulância e mesquinharia humanas para só então, entender o que se faz de fato com o sentido da visão, de qual olhar ele realmente se refere, como se jogasse na cara do leitor, de maneira violenta, porém na melhor das intenções, aquela máxima de Lacan, a do aprendizado e amadurecimento pelo trauma. Só através deste trauma, passar a perceber o desastre de não enxergar o próximo, e as conseqüências terríveis dessa solidão e isolamentos voluntários.


Referências Bibliográficas

BOCK, Ana Mercês Bahia et al (1988) – Psicologias, Uma Introdução ao Estudo. São Paulo, Editora Saraiva.
COSTA, Horácio (1997). José Saramago – O período formativo. Lisboa, Editorial Caminho.
DURKHEIM, Émile (1973). Coleção Os Pensadores São Paulo, Abril Cultural.
QUINTANEIRO, Tania et al (2003). Um toque de clássicos – Marx, Durkheim, Weber. Belo Horizonte, Editora UFMG.
SARAMAGO, José (1996). Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia das Letras.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da (1989). José Saramago – Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa, Publicações Dom Quixote.

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