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Depressão - Digressão

Por que eu devo adiar a dor dos outros enquanto a minha perdura? Por que eu devo permanecer aqui para que apenas as pessoas não sintam, neste momento, a confusão inexplicável de perder alguém com quem elas se importam? E por que eu importo? Para que eu sirvo? Pelo que eu vivo? Pelo essencial da sobrevivência, da evolução, e das razões para dar como herança o gene útil pela vida, eu não sou de grande valia. Eu não sou um grande pensador, nem um grande inventor, ou uma pessoa chave no direcionamento ou reinvenção da civilização. Essas pessoas que as pessoas tendem a chamar de heróis, ou gênios. Eu não sou nada disso. Eu não sou santo, não sou humanitário, nem mesmo um mentor. Eu não sou nada. Já me foram dadas mais do que evidências. Eu sou apenas um peso morto. Então, por que? Por que continuar? Por que persistir no inevitável, de que não vai dar em nada? Quem melhor para saber dos desígnios da minha própria vida senão eu? E eu sei que não vai dar em nada. Eu sou menos do que um sopro desperdiçado. A matéria logo vai se desfazer e tomar conta de outra coisa, então por favor, apenas me deixe. Seria eu melhor como carbono, e daqui a centenas de anos, dar a minha matéria para uma forma de vida mais valiosa e necessária. Por que afinal as pessoas me impedem de encerrar uma existência que só me machuca? Eu não quero mais ficar aqui, não quero. Por que eu tenho tanto receio? Eu sinta talvez o medo da decepção das pessoas por mim, talvez o medo de fazer meus pais chorarem. Mas eu não estarei aqui para ver, estarei? Só posso imaginar como seria, e de repente, talvez nem chorem, talvez apenas surja um choque e um silêncio brutal sobre tudo isso. Esta casa sempre foi vazia de felicidade verdadeira, de qualquer forma. Por que deveria prosseguir com isso? Ninguém me conhece de fato, ninguém sabe o que eu sou além dos rótulos costumeiros, de que sou estranho, esquisito, antissocial, estas coisas. Então por que as pessoas me querem aqui? Não vejo pessoas esperando pela minha companhia ou me fazendo ligações dizendo o quanto eu sou importante e necessário na vida delas. Em todas as conversas eu apenas sinto um incômodo quando eu começo a dar um pedaço de mim, um pedaço verdadeiro de mim, porque são falas que não correspondem a tudo o que é previamente construído e dito sobre como as pessoas deveriam pensar. E até mesmo a minha fala é isso, porque elas não são minhas, elas são fragmentos de visões alheias que correspondem a um grupo que se sente também fragmentado, mas que se recusa a manter-se unido. Eu sou uma representação do que é incômodo, mas em uma escala pequena, tão pequena que é passível de ser ignorada. Então por que afinal eu preciso estar aqui uma vez que estou sempre sendo ignorado? Não é egoísmo demais as pessoas me impedirem apenas porque não querem sentir uma dor estranha ou talvez uma culpa que nem eu mesmo entendo a razão dela existir? Depois de tanto tempo sem ser levado a sério, acabamos perdendo a obsessão pela vida, e estando na posição em que estou, eu não consigo entender a insistência das pessoas. O que afinal elas querem com as suas escolhas e decisões senão uma porção de estímulos momentâneos para parecer que as coisas são boas? Não posso confiar nem mesmo nas minhas memórias, por causa do meu estímulo por sobrevivência, em que todas as memórias, ou quase todas elas, passam por cima dos meus próprios erros para que eu crie a ilusão de que sou apenas uma vítima desse lugar. A minha própria mente me engana, então como posso ter motivos senão apenas para ver o sorriso no rosto de outra pessoa que talvez sequer entenda quem ou o que eu sou de verdade?

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Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

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