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Argumentum ad antiquitatem: apelo à tradição

Nada resiste melhor ao teste do tempo do que a sabedoria.

Este pensamento me cruzou a mente quando eu estava, nesta manhã, tomando meu café e verificando se minhas roupas no varal estavam completamente secas. Pendurei as roupas ontem à noite, e imaginei que nesta manhã elas já estariam prontas pro uso, mas não, as extremidades ainda estavam úmidas. Ninguém se sente confortável vestindo roupas úmidas. Queremos o calor e o conforto.

Há coisas que são mais importantes que as outras, e há coisas que são menos importantes que as outras, mas não é possível, jamais, determinar o que são estas coisas. O que determina é o tempo, é a época, a condição, a situação. Podemos dizer que alguma coisa sobressai às outras, e caímos nos erros das nossas máximas, que quase sempre, comumente, talvez, ou porque não, por uma necessidade de conforto, elas se confundem com a nossa máxima de vida, o nosso idealismo pessoal.

Desde cedo somos ensinados, pelo menos na minha realidade social, a renegar completamente a imaginação, e ironicamente, passamos o resto da vida reféns dela, reféns de um estado de desejo de utopia, da mentalidade de que se seguirmos esta ou aquela atitude comportamental, alcançaremos o desejo maior que é o nível de civilização que acreditamos ser o melhor para nós.

De repente todos os nossos pensamentos estejam sempre originados de um incômodo em comum, e no meu caso, o meu passado, a minha história de vida e meus problemas de baixa estima me tornam um grande refém de mim mesmo. Que coisa mais narcisista, mas a única forma que eu encontrei, hoje em dia, para lidar bem com isso, é simplesmente aceitar esta minha natureza, ou este meu momento, de que preciso olhar para mim e fazer as pazes comigo mesmo, aceitar a mim mesmo, aceitar os fatos.

Mas algo eu sempre considerei em mim, eu sou mesmo uma pessoa muito sensível, mas não muito inteligente, devo admitir. Ser sensível não é uma vantagem em tempos de caos. Pode ser admirável de um ponto de vista ou outro, mas é uma característica completamente inútil do ponto de vista prático. Quem tem tempo para ponderar? Não escrevo isso com uma tonalidade fatalista, como se a falta de sensibilidade fosse a origem de todo o mal no mundo. De forma alguma. Hoje em dia digo que a sensibilidade é algo que tem muito pouco espaço, a sensibilidade é algo primordial pra percepção, mas é perigosa demais para a sobrevivência. Em tempos de caos é preciso ser duro e forte, e para uma pessoa sensível isso é angustiante demais. Então o recolhimento é a coisa mais importante pra se preservar em situações assim.

Tive colegas de escola que eram extremamente mais brilhantes que eu, em seus interesses pessoais, em seus gostos e personalidades, e minha sensibilidade me tornou um ser mudo diante de tudo isso, me faltava algo que eles tinham em demasia, segundo a minha própria visão, que era a originalidade de buscar algo para eles próprios, um gosto pelo saber, cada um à sua maneira, cada um em sua própria ideia do que queriam para o seu futuro. Eu queria ser como eles, eu não queria ser como eu. Mas eu viva numa letargia total de deslumbramento pelas novidades da vida, e mesmo assim, viva passivo demais, sem atitudes, sem personalidade alguma. Pois é, eu era extremamente sem graça.

Lembro de um certo Paulo que, com quinze anos de idade, já era bastante interessado em física quântica. O que diabos é física quântica? Eu perguntei pra ele, e a resposta veio como uma facada inesperada pra mim: eu poderia te explicar mas você não vai ter capacidade de entender. Pelo menos é como eu me lembro.

Sabe que a memória é traiçoeira? Ela nos faz lembrar das coisas da forma como nos é mais agradável, e para mim, por anos, era mais agradável me lembrar desta história assim. A resposta dele feriu diretamente no meu ego, e eu me senti humilhado. Mas de repente ele nem quis ser rude comigo, de repente ele estava apenas sendo honesto porque de fato, física quântica não é algo fácil de ser compreendido, ainda mais por um adolescente que não tinha base alguma pra compreender o assunto. E a humilhação talvez tenha vindo mais dos que estavam ao redor, aquele coro de zombaria que sucede um comentário aparentemente inesperado. De repente, ele estava verdadeiramente, apenas sendo um garoto honesto comigo. Mesmo assim isso permaneceu cravado na minha memória e eu usava esta situação como base para a pessoa que eu não queria ser. Eu não sabia o que eu queria ser, mas eu sabia muito bem o que eu não queria ser, e o que eu não queria ser era alguém incapaz de compreender alguma coisa. Confesso que até hoje não entendo física quântica. Mas eu nunca me dediquei tempo pra isso. Veja bem, estou me justificando novamente. Sigamos.

Em outra ocasião, no dia 12 de Setembro de 2001, um dia depois da queda das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, um professor de informática do SENAI tentou discorrer sobre o assunto mas claramente ele não tinha nenhuma habilidade, porque o que aconteceu foi o de um adulto ingênuo colocar suas impressões de forma generalizada e sem a menor ideia do contexto que levou àqueles ataques. Era comum naquela época, pessoas que vivam em negação do que consideravam aceitável ou não, e viviam sob uma ótica completamente ilusória de civilização, com valores impostos pela TV ou pelo cinema, a clássica crítica que muitos estudiosos marxistas alertavam, o que hoje chamam de "praga do esquerdismo". Era um fruto da ditadura? Do conceito do bom cidadão do início do século XX? Dos bons costume? Eu não sei dizer, não saberia dizer, mesmo hoje em dia. Se foi isso ou não, eu não sei, mas de certa forma eu agradeço por me trazer uma noção bem clara de que não existe certo ou errado na sociedade, e de que quem conta a história não é nem mais o vencedor, mas sim aquele que tem condições de pagar pela publicação do livro. Enfim, o que aconteceu ali é que o professor tentou nos convencer de que os Árabes tinham inveja dos Estados Unidos. Era bem comum essa narrativa, de que os Estados Unidos são uma nação soberana e que, a custo de muita luta, atingiram o ápice da civilização que o Ocidente tanto almejava. Felizmente eu já estava vacinado contra essa mentalidade porque eu tinha um amigo na época que me emprestou um livrinho modesto intitulado "A Invasão Cultural Norte Americana" de uma autora chamada Júlia Falivene Alves. Este livro abriu meus olhos pra uma realidade que nunca tinha sido me trazida antes, porque o que imperava no discurso dos adultos ao meu redor era isso mesmo, os EUA e Japão eram nações soberanas, a Alemanha era um país de assassinos por terem trazido Hitler, a Inglaterra era um país que vivia atrás dos EUA por terem perdido sua colônia, o Brasil era a miséria que era por ter sido colonizado por Portugal, porque se tivesse sido colonizado pela Inglaterra, seria uma potência com os EUA, a África era um continente que passava fome porque assim Deus queria, os países Árabes eram uma ameaça com sua religão Islãmica esquisita, e o restante do mundo praticamente não existia. "Eles fizeram isso puramente por inveja" e na mesma hora eu troquei olhares com dois amigos, um deles me foge o nome, acho que se chamava Vitor, e ele fez uma expressão de reprovação pelo comentário do professor, e o outro colega, o Wagner, fez uma expressão de desprezo pra mim.

A expressão do Vitor era porque ele sabia das minhas ideias, e nós dois concordávamos, éramos dois jovens que tinham descoberto o socialismo e estávamos em busca de entender o que eram os sistemas capitalista, comunista, socialista, liberal, etc. Então éramos como dois jovens que tinham identificação um com o outro. Ele fez um olhar de como não se conformasse com um professor tentando influenciar a mente dos alunos com tamanha bobagem.

No caso do Wagner a intenção era oposta. Na época eu não sabia, mas hoje em dia, sempre que eu penso no Wagner eu começo a entender porque ele agia como agia. O Wagner era agressivo nas palavras, tinha uma retórica debochada e sarcástica, principalmente para os assuntos sérios, e quando cabia, sempre no final das suas frases vinha alguma ofensa direta. Era a retórica da pessoa que não admite estar errada, muito menos diante de pessoas que ele considerava inferiores. O que vou dizer a seguir é completamente preconceituoso. O Wagner era o rapaz mais gordo da sala, e hoje, penso eu, ele encontrava sua auto estima nesse comportamento de se considerar muito mais inteligente que o restante de nós, por isso tamanha agressividade. Mais tarde, essa atitude dele me fez refletir sobre o que é de fato inteligência. Mas ele tinha razão, para aquele círculo eu era um completo idiota, talvez o último da cadeia evolutiva da nossa espécie, nunca fui muito bom com raciocínio rápido, e com cálculos. Mas jamais vou cair na desculpa fajuta de que "sou de humanas" apenas para me consolar com o fato de que aqueles garotos eram muito mais brilhantes que eu no quesito cálculos. Eu prefiro me conformar com a questão da oportunidade e acesso a um mentor mais eficiente mesmo. Hoje em dia, quem sabe, eu posso até me dedicar mais a esse conhecimento e buscar um entedimento melhor. De qualquer forma, eu não aceitava que o Wagner quisesse se sentir superior até mesmo sobre a minha visão social e política, porque nesse aspecto não existe superior ou inferior, existe apenas retórica, argumento, lógica. Uns dois anos mais tarde uma professora de história do Cursinho da Poli me confirmaria isso com a seguinte frase, que ela cunhou depois de muito estudar a realidade social de países principalmente da Europa: não importa se você é capitalista, comunista, socialistas, liberal, as pessoas não ligam pra isso se existe bem estar social. Então o Wagner buscou na fala do professor de informática um reforço pra sua visão patética do mundo político da época "os árabes fizeram o ataque por inveja".

Um dia desses, por curiosidade, eu retomei o tema 11 de Setembro nas minhas pesquisas pela internet e tive a confirmação de que eu estava certo o tempo todo, mesmo naquela época, com apenas 15 anos de idade, e sem saber argumentar o porquê de eu estar certo, eu sabia que o ataque não havia sido por apenas inveja, aliás, um reducionismo muito barato e fajuto. Eu não conseguia aceitar o fato de que os Estados Unidos eram uma nação forte e rica por mero acaso, por mero esforço. Com trinta e três anos de idade é até ingênuo demais permanecer nessa crença, é não querer abrir os olhos para a verdade de que, independente de ser uma nação forte ou fraca, o governo, o poder político não dá a mínima para a população comum. Os EUA usam a nação soberana como discurso para fortalecer o seu exército em potencial, que não se limita apenas aos seus alistados por voluntarismo, aos militares de carreira, e que se extende a toda a sua população e aos seus simpatizantes.

Independente disso, usar a inteligência como ferramenta de autoestima é algo que não se sustenta por muito tempo. Agredir por agredir, sem base e sem um conhecimento palpável é uma coisa que não se mantém. Cedo ou tarde a meia verdade, a crença por conveniência, acaba caindo por terra. O que sobram são os fatos, que se confirmam com o que sucede no tempo. Hoje temos muitas evidências de que as nações em guerra com o mundo árabe não estão preocupadas com o bem estar mundial, mas sim com o controle político das regiões, essa estúpida e interminável guerra fria, guerra de blocos, guerra de ideias. Pessoas como meu professor, como o Paulo, como o Wagner, esses são os ingênuos potenciais que alimentam e justificam essa violência desmedida apenas para, no fim do jantar, poderem dizer com orgulho: eu estava certo. Bem, eu prefiro mesmo é estar vivo.

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