Pular para o conteúdo principal

Ciência da Humanidade

Peço desculpas ao rapaz da IBM que estava lendo o livro de Richard Dawkins, Deus: Um Delírio, e que foi rapidamente atacado por mim, por falta de coragem de encarar que existem realidades diferentes da minha.

A matemática sempre me fascinou. Não só a matemática, mas tudo o que a usa como ferramenta, os números, a filosofia, a física, a biologia, a química, a engenharia, a economia, as ciências da informação, as ciências dos softwares, as linguagens de programação, a música, a pintura, a astronomia, a poesia, a eletricidade, tudo o que se originou da harmonia dos números, tudo isso pra mim é arte.

Se existe algo que já me incomoda faz muito tempo nos sistemas educacionais do Brasil é essa distinção cada vez mais forte entre Ciências Humanas e Ciências Exatas. Eu ouço essa dissociação como o som de uma facada no meu peito, isso realmente me dói e me incomoda. Para mim tudo é ciência humana, até mesmo a matemática. Eu sempre me lembro da frase de Darcy Ribeiro que disse certa vez que "A crise da educação no Brasil não é uma crise; é projeto", e eu acredito. George Orwell, Arthur Blair na verdade, nos alertava do perigo do uso das palavras para manipular as massas, e eu acho que unir a palavra "crise" com "educação" passa uma ideia de que é algo vindo do acaso, algo que está acontecendo por forças da natureza que ninguém pode controlar, um verdadeiro crime contra o intelecto humano afirmar que a educação está em crise. 

A educação não está em crise, a educação está, a meu ver, em processo de degradação contínua, afastando as pessoas do fascínio que é aprender. Essa distinção "ciências humanas" e "ciências exatas" fez com que isso virasse até mesmo uma expressão adjetiva "olha, eu sou péssimo com números porque eu sou de humanas". Ser de humanas virou sinônimo de não saber sequer o básico de uma tabuada, e isso martela no imaginário popular como a pancada da verdade "poxa, eu acho que você é de humanas", enquanto a relação com os números, que poderia ser mais íntima e menos problemática, torna-se cada vez mais distante, como se os números fossem seres assombrados e incompreensíveis. Logo, começa-se, como se não bastasse, uma distinção até mesmo de classe social, uma distinção de poder de intelecto, entre os que sabem os números, sendo estes superiores e iluminados, e os que não sabem, os pobre diabos que só servem para debater assuntos inúteis nas redes sociais, ou algo assim. Estou apenas usando um exemplo generalista, porque isso é só uma confissão, então não carece de dados. Apenas peço o cuidado de não ler minhas palavras e tomá-las como verdade absoluta. O que faço aqui é apenas um convite para se refletir sobre a questão, e quem sabe, a mente mais curiosa e mais audaciosa tomar a atitude de buscar os dados relevantes para a comprovação do que eu questiono. Peço desculpas, inclusive.

Mas a maior importância de uma identificação com os cálculos surge em situações que podem não necessariamente ter a ver com um cálculo exato. Podemos calcular decisões cruciais em nossas vidas, agir de forma mais racional em momentos importantes que não nos levariam a ter dívidas com instituições, ou sequer, depender destas, como se a vida além do que a gente vê fosse repleta de assombro inexplicável. Os números podem nos trazer a realidade com mais clareza e tranquilidade, e perceber que por trás de discursos inflamados de paixão e ódio, seja lá de quem for, existe uma tremenda fome de poder e controle social, e por isso, os números podem ser até mesmo uma vacina contra um mundo que se deixa levar cada vez mais pelo ódio. Ao que parece, não aprendemos com o nosso passado. As ciências humanas, história, nos ensina, e as ciências humanas, matemática, física e biologia, podem nos mostrar que podemos viver em uma harmonia social sem a necessidade de agir por impulso ou medo.

A matemática tinha como objetivo, a princípio, a explicação de fenômenos da natureza, a matemática como sendo a chave de fenda e o parafuso que uniria a sombra da árvore à distância dos cosmos, tornando-o um único móvel palpável para a imaginação, e nos dando uma visão concreta de que a imaginação pode ser realizada no mundo em que temos diante das nossas mãos. Mas hoje, eu peço licença aos matemáticos, e peço também a sua ajuda, e peço desculpas, mas poderíamos usar essa ferramenta da matemática para consertar os sentimentos malígnos dos nossos corações.

De qualquer forma isso é só um desejo poético. Eu vejo conhecimento humano em tudo, embora seja um grande ignorante que não sabe explicar a grande parte dele. Eu prefiro dar o discurso que prepara o palco para os grande gênios da atualidade. Você sabe quem eles são ou podem ser: aquele jovem que prefere se enclausurar no seu quarto, com seus livros, com seus jogos de lógica, com seus desafios da mente, e que sonha e imagina coisas que estão ainda aquém do seu discernimento, e que um dia terá instrumentos para mostrar isso ao mundo. Àquela garota ou garoto que carregam livro, papel e lápis na mão, repletas de números e anotações que só ele no momento vai entender, mas um dia irá torná-los um conhecimento que pode até mesmo salvar vidas. Este texto é um discurso de preparação para o palco que fará você, jovem curioso, ser aplaudido. Eu quero que você prospere.

Lembro de uma situação em que eu trabalhava na IBM e era jovem e arrogante, eu acreditava que a literatura clássica salvaria as pessoas, e por isso vivia lendo e carregando livros pra lá e pra cá, numa esperança de que as pessoas vissem o título e sentissem a curiosidade de começar uma conversa, na esperança também de que eu pudesse despertar nas pessoas a vontade de ler. E certa vez eu vi um rapaz uns dois anos mais novo que eu lendo o livro "Deus, um delírio" de Richard Dawkins. Até hoje eu só li alguns capítulos deste livro, por falta de tempo de terminá-lo, e esta manhã eu me deparei com ele de novo. Decidi que vou lê-lo por completo. Naquele dia, com o menino carregando o livro nas mãos, eu li o título em voz suficiente pra chamar a atenção dele, e quando ele olhou pra mim eu já fiz o que costumava fazer com tudo: "eu não gosto dele". E ele respondeu com certa humildade indignada: "nossa, o cara é um gênio" e eu disse "será mesmo?", questionando.

A questão é que eu era religioso na época, e eu ainda tinha resquícios de deus e divindades dentro de mim, e ter um cientista que gastara a vida inteira numa cruzada para combater a fé alheia era algo que me atacava diretamente. Mas eu agi como um fundamentalista preconceituoso, e como tal, já ataquei o rapaz e o livro, sem provas, sem evidências, sem nunca ter lido. Sem cálculo algum. Eu era um grande idiota.

Só existe uma grande verdade nessa história inteira, eu ainda continuo sendo um grande idiota, mas ao menos um grande idiota confesso, e fascinado pela única ciência que existe, que é a Ciência da Humanidade e tudo o que dela se originou.

Postagens mais visitadas deste blog

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.