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Depressão - Digressão 4 - As Cartas que Salvaram a Minha Vida

Este texto é direcionado aos meus alunos, aqueles que foram meus alunos de inglês no ano de 2017 na Escola São Luís Anglo. Eu me direciono a todos eles.

Talvez eles se recordem quando no final do ano eu passei por um período bem vísivel de instabilidade emocional. Aquela instabilidade foi originada por um acúmulo de situações que vinham testando a minha resistência há algum tempo, e são tantas as situações que não compensa listá-las aqui, e talvez nem venha ao caso.

Mas o que me segurava e me dava força para tudo o que vinha acontecendo era especificamente um namoro. E quando, em Setembro de 2017, aquele relacionamento de três anos  acabou, eu perdi completamente o chão, como se tivessem puxado a última parte de uma casa que já estava prestes a desmoronar. Antes disso, eu não saberia dizer se meu desequilíbrio era tão visível assim ou se eu ainda conseguia disfarçar, mas depois do fim do meu namoro as coisas simplesmente perderam o rumo pra mim. Foi como se toda a pressão que eu tinha que lidar finalmente tinha caído completamente em cima de mim, e eu já me encontrava tão cansado que praticamente não tive forças para levantar. Se eu tiver que escrever de forma bem direta, a gota d'água havia sido dada, e eu tinha perdido totalmente o ânimo, eu havia desistido da vida. Não era metáfora, eu realmente declarei isso para muitas pessoas durante semanas: "eu não quero mais, eu desisto, eu já cansei disso aqui. Pra mim já deu, eu quero morrer." Entre outras variações destas frases.

Eu espero que a pessoa mais apegada à vida ou a pessoa que encara tudo com superstição não fique horrorizada com as coisas que eu dizia e que descrevi acima. Apesar de hoje estar melhor da saúde emocional, eu parei de encarar a vida como uma dádiva ou algo sagrado desde o começo dos meus vinte anos. Também não quero detalhar esta questão, demoraria muito tempo.

Para meus alunos eu gostaria de dizer o seguinte: obrigado. É assim mesmo, uma única palavra. Vocês podem sentir-se ofendidos. "Por que só obrigado professor? Por que uma palavra tão banal perto de tudo o que fizemos?" Na verdade, reflitamos por um momento. Existe uma palavra forte para expressar gratidão, para que então resenhar por linhas e mais linhas a respeito de uma coisa que pode ser resumida nessa simples palavra? Não podemos perder das palavras o potencial e o valor que elas carregam. Vocês querem um pouco mais do que isso? Pois vejam a imagem abaixo:



Estas palavras que vocês me mandaram, como muitos até mesmo declaram nas cartas, podem não ter parecido grande coisa. Mas a palavra, seja ela rebuscada ou simples, o jesto de tocar em outra pessoa e dizer "ei, eu estou te vendo, eu estou aqui, você existe para mim" tem mais representatividade do que imaginam: eu ainda estou aqui. Eu era uma pessoa disposta a tudo para morrer, e vejam só, eu ainda estou aqui. Não foi por uma decisão minha. Vocês foram alguns dos responsáveis por eu ainda estar vivendo.

Não posso ser injusto e nem mesmo enganá-los quanto aos créditos do porque eu ainda estou aqui. Vocês não foram os únicos que me ajudaram, eu tive meus pais, tive alguns amigos que seguraram a barra por mim. Mas é, vocês fizeram parte disso, e eu estou apenas retribuindo um pouco da minha gratidão. Não sei se jamais poderemos medir o quanto isso representa para nós. Se tem uma coisa que aprendi bem cedo na vida é que "para sempre" é uma piada de mau gosto. As coisas não duram para sempre, e tudo bem. Precisamos entender e aceitar, aprender a lidar com o fim das coisas. As coisas acabam. A vida acaba. As relações acabam. Mas o que podemos tirar delas? Eu confesso meus queridos alunos, eu me pergunto disso todos os dias (imagino eu que todos os dias, eu não anoto todas as vezes em que me pergunto isso), e sempre que chego nessa exata indagação "Mas o que podemos tirar da vida?" eu sinto um calafrio paralisante, até agito o pensamento para fora da cabeça como se fosse um morcego tentando pousar no meu cabelo. Eu não tenho resposta pra essa questão. Eu não sei o que podemos tirar da vida. Porque na minha mente sempre vem um outro pensamento que me leva a um espaço assustador: Será que nós queremos aprender algo da vida para transitar de um espaço para outro com a bagagem do nosso aprendizado? Deixa eu ver se consigo ser mais claro. Digamos que exista vida após a morte. Então aprendemos tudo nesta vida, porque na outra vida levaremos esta bagagem de aprendizado para que possamos fazer algo com isto. Mas e para aqueles que não acreditam na vida após a morte? O que podemos esperar da vida? Bem, vocês me deram um pouco da resposta naquelas cartas. Nossas palavras tem efeito, nossos gestos, nossas crenças e esperanças, elas afetam as demais pessoas. Não podemos jamais subestimar o poder da nossa existência no espaço em que estamos. Mesmo parados estamos causando alguma impressão em algo ou alguém.

Eu gostaria de compartilhar uma experiência que tive recentemente. Eu estou fazendo um treinamento para uma renomada escola de inglês, e por causa disso, estou cercado dos mais qualificados profissionais que vocês possam imaginar. Para vocês entenderam o que é isso, basta lembrar o que era ser criança perto de uma complicada conversa de adultos, e é como eu me sinto. Estou cercado de tanta gente competente, experiente, repleta de conhecimento, cultura, criatividade e coisas para compartilhar. E a minha impressão desde que coloquei o pé na sala de treinamento foi a seguinte: "eu sou a pessoa menos qualificada aqui". E esse é um pensamento constante. Agora vejam só como a vida nos ensina coisas que não estão necessariamente dentro de um currículo escolar:

Semana passada, no dia 11 de Setembro de 2019, tivemos algo que eles chamam de Teaching Process 1, ou TP1. Nesse Teaching Process estariam nos avaliando na nossa capacidade de rapport. O rapport é uma técnica de abordagem de público, com certos maneirismos, tom de voz, linguagem corporal, podemos conquistar o público sem que o público perceba. Algo que eu fazia o tempo todo em minhas aulas, e algo que eu vinha desenvolvendo desde que comecei a dar aulas. Se algum de vocês pretende ser professor ou trabalhar com o público, isso é uma coisa importante a se considerar. Enfim, eu estou desviando do assunto.

Nesse TP1 nos pediram para elaborar uma aula de conteúdo básico, para iniciantes, porque iriam observar como criaríamos o rapport com alunos que tivessem pouco ou nenhum conhecimento de inglês. Para todo professor que se importe com o aluno, abordar o conteúdo básico de qualquer assunto é um desafio muito grande. Uma das participantes estava claramente nervosa. Antes da aula tentamos dizer palavras de apoio uns aos outros, porque éramos todos participantes na mesma situação, mas esta moça infelizmente deixou o nervosismo tomar conta e acabou não tendo a performance que ela esperava de si mesma. Depois que ela deu a aula, passou o restante da manhã com uma expressão de decepção. A imagem de desapontamento dela foi embora para casa comigo, me incomodou, e eu senti que devia dizer alguma coisa. Tive empatia por ela e acabei enviando um e-mail dizendo a ela para que não cobrasse tanto de si mesma, porque todos nós ali cometemos erros e estávamos aprendendo. Ela me respondeu agradecendo, mas uma frase que ela disse me chamou muito a atenção:

"Eu estou muito atrás de vocês em muitos sentidos" querendo dizer que ela tinha muito o que aprender. Oras, eu conheci essa moça no dia da primeira entrevista, e a linguagem e uso do inglês dela me causaram uma impressão de absoluta admiração. Ela usava as palavras e expressões com tanta propriedade e naturalidade que parecia uma nativa. Eu compartilhei com ela essa impressão dizendo que o domínio que ela demonstrou do idioma no dia da entrevisa fez com que eu me sentisse nervoso, porque afinal eu acreditava que era eu quem tinha muito o que aprender com ela, e com os demais.

Dessa experiência eu tive uma percepção curiosa: estamos o tempo todo nos comparando com outras pessoas, mas no fim das contas, alguém pode estar pensando algo muito bom sobre nós mesmos enquanto que estamos sempre pensando o contrário. A partir dali eu adicionei mais uma coisa à minha caixinha de aprendizados, a de que aprender a aceitar elogios e a admiração das pessoas não é arrogância, é um sentimento de gratidão e de segurança. Se as pessoas nos admiram é porque estamos fazendo algo para que isso aconteça, por isso é uma questão de gratidão aceitar essa admiração, e honrá-la de alguma forma.

Agora, honrá-la. Claro, não quero me esconder como um covarde e dizer "todos nós cometemos erros". Mas eu cometi os meus, e foram muitos, e talvez você saibam de alguns deles. Quando estamos desesperados perdemos completamente a noção de consequências, e eu espero que vocês nunca cheguem a esse ponto na vida. Mas se em algum momento chegarem, façam como eu fiz, aceitem a ajuda das pessoas. O que vocês trouxeram até mim por aquelas cartas me ajudou a enxergar o limite das coisas, quando eu estava tão ferido por dentro que não ligava mais para quem eu ia ferir no meio do caminho todo, por esta razão, não pedirei perdão, pois seria negar algo tão natural, que é desviar do nosso código moral em vez ou outra, não porque somos más pessoas, mas porque o nosso código moral é algo que não deve ser um limitador das nossas vontades. O que peço a vocês é, aceitem a si mesmos quando sentirem que precisam ir além dos limites. Esses limites transformam e nos jogam em lugares da vida que nos mostram que as coisas não são necessariamente como deveriam ser. Isso soa absurdo, mas curiosamente aprendi isso observando a vocês. A noção de certo e errado de vocês é curiosa e completamente diferente da minha, e por conta disso eu tive que me reinventar. Eu nunca quis que vocês me seguissem como um exemplo de nada, porque apesar de eu ser o professor, eu confesso de coração aberto, vocês me ensinaram muito mais. Não, isso não é indulgência, isso é verdade. Eu poderia listar diversas situações que nós vivemos naqueles anos  para provar a vocês que sim, vocês me ensinaram. Mas posso dizer, eu era um ser humano antes de conhecê-los, e depois de conhecê-los, eu virei alguém a quem eu posso olhar no espelho e dizer: eu te amo. Obrigado a todos vocês por me ensinarem a me amar. E por favor, amem-se também. E amem uns aos outros como eu amo vocês. E agradeçam uns aos outros como eu agradeço a vocês.

Este texto pode parecer confuso, mas eu escrevi de uma única vez e não pretendo revisar. Não escrevi nada sobre as cartas de vocês no momento em que as enviaram, emoção pra mim é uma força muito poderosa que às vezes bagunça a minha cabeça de maneiras que eu levo tempos para organizar. Mas aqui está, no mês da prevenção ao suicídio e às doenças mentais, eu estou aqui devolvendo todo o carinho. Estou aqui para vocês, pensando em vocês, em cada um de vocês, com seus olhares e seus sorrisos, com suas falas na hora da minha explicação chata da matéria que nem mesmo eu consigo lembrar (pra terem uma noção da pouca importância disso), lembrando de vê-los andando para lá e para cá uns com os outros, conversando, criando laços, histórias, tentando sobreviver ao ambiente, com coragem, que tanto tentava roubar a juventude de vocês.

Jamais vou me esquecer daquele dia em que eu chorei em uma sala de aula e todos vieram me abraçar. Foi um dos momentos mais humanos da minha vida inteira e eu nunca vou me esquecer.

Vocês foram os melhores alunos que um professor poderia ter, todos vocês, meus alunos da Escola São Luís Anglo no período de 2014 a 2019. Eu espero que vocês todos vivam em constante aprendizado. Fiquem bem. Amo vocês.

Post Scriptum: A você com quem eu tive um relacionamento entre os anos de 2014 até 2017, não te guardo rancor, pelo contrário, e você sabe disso.

Você me apareceu em um momento que eu realmente precisei, e te amei mais do que pude amar alguém. Mas um dia você não estava mais feliz comigo, e eu precisei aceitar e te deixar ir embora. Falando assim parece que foi simples, mas nós dois sabemos o quanto de dor eu te causei. Uma forma de conseguir seu perdão, se é que um dia eu terei esse direito, é me distanciar e apenas desejar pela sua felicidade, falar bem de você por aí, colocar no seu caminho apenas o que te faria bem, porque você é doce e carinhosa com todo mundo que conhece, e você é criativa e amorosa, e uma das pessoas mais bem humoradas que eu já conheci. Tenho certeza de que você vai se dar bem onde quer que vá.

Aprendi com você, muito mais do que teria aprendido com qualquer outra pessoa até aquele momento. Se tem algo que eu desejo a você é apenas paz e esclarecimento. Felicidades, você merece, você batalha duro, você luta por isso todos os dias. Nossas vidas talvez se cruzem novamente, mas o fato de estarmos distantes um do outro não quer dizer que não haja respeito e carinho e votos de bons acontecimentos. Fique bem.

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