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Torim e A Guerra Cósmica

Eu tive um aluno chamado Gabriel Mussolini. Antes de tudo, este não é um texto sobre a origem do sobrenome do ex ditador italiano. Não sei nada sobre o Benito Mussolini, mas imagino que o meu ex aluno seja o dimetrial oposto, afinal ele é um garoto extremamente doce e gentil, com uma imaginação fértil e aguçada. Ele é um sonhador, mas no bom sentido.

Meu ex aluno, o Gabriel, escreveu um livro chamado Torim e a Guerra Cósmica. É um livro de fantasia com inspiração em mitologia grega misturada com modernidade. Mais ou menos o que o autor de Percy Jackson fez.

Aqui vou fazer um adendo: eu não me oponho de forma alguma à literatura fantástica, pois a considero uma excelente porta de entrada para a leitura. Exsitem divisões até mesmo no meio da literatura, é inacreditável, porque enquanto há pessoas que defendem o ato da leitura como um hábito saudável e necessário, existem outros que sim, concordam com a ideia, contanto que a leitura seja restrita a determinado tipo de material. É como se houvesse uma preocupação com a qualidade do que se lê, e em como isso pode acabar resultando na formação de uma mente leitora completamente errada, por assim dizer, pois afinal, o objetivo maior de começar a ler é para o amadurecimento e alimento da intelectualidade. A intelectualidade estaria mais centrada na percepção da realidade do que na simples habilidade de reconhecer e traduzir palavras em imagens. Por fim, a literatura de fantasia seria apenas um exercício de imaginação sem nenhum tipo de objetivo prático produtivo. Teríamos aqui, talvez, uma visão até mesmo capitalista da leitura, onde ler só é considerado útil se formos ler para produzir. Fim do adendo.

O Gabriel escreveu a história dele quando tinha dezesseis anos, e sabendo como funciona a cabeça de um autor, posso até imaginar que ele teve contato com a fantasia bem antes disso, e quando fechou o primeiro volume de Percy Jackson deve ter declarado para si mesmo, como meta pessoal: vou escrever um livro, eu quero escrever uma história assim; então é muito provável que ele tenha decidido escerver esse livro anos antes de sequer ter aprendido como começar a por a ideia no papel.

E foi aos 17 anos que ele concluiu a história, e iniciou a árdua caça por uma editora que a publicasse. Eu me lembro bem, em 2014, quando eu já morava em Ubatuba, quando ele entrou em contato comigo por facebook perguntando sobre processos de publicação de livros. Entendo e agradeço a confiança que ele me depositou, mas foi uma pergunta estranha para mim, afinal o desejo de ser escritor, para mim, ainda não saiu do papel. Eu tenho uma ideia para história que está presa na minha mente e por mais que eu me debata, não consigo tirá-la de dentro de mim de forma satisfatória. A história que eu quero escrever não é a história que eu estou escrevendo. Ainda está muito aquém do que eu gostaria, e a passagem do tempo só torna tudo ainda mais angustiante.

Acredito ter sido em 2015 quando o Gabriel finalmente conseguiu publicar sua história, ele enviou o convite do lançamento do livro, convidou diversos ex-colegas de escola e ex-professores, as pessoas ficaram ao mesmo tempo felizes e animadas por ele, e imagino como ele pode ter se sentido, com apenas 17 anos de idade, ter publicado o seu primeiro livro. Fiquei extremamente curioso para ler. E eu li. E não consegui avançar para além do segundo capítulo.

 Fui buscar críticas e releituras sobre a história, pois achei que a minha mente estava contaminada com a tal alta literatura dos clássicos, mas era o que eu estava lendo mesmo, o livro era imperfeito em uma série de aspectos tanto técnicos quanto de narrativa.

Não quero aqui entrar nos detalhes, mas gostaria de falar um pouco sobre a postura do Gabriel na hora de receber estas críticas. Ele ficou obviamente chateado. Ninguém que empreende tamanho esforço num trabalho está esperando ver sua obra tão negligenciada. Mas em quase todas as críticas que eu li por aí, as pessoas tinham total cuidado e respeito pela pessoa do Gabriel, especialmente quando diziam que eram totalmente a favor do surgimento de novos autores e influenciavam isso.

Em uma das respostas à crítica o Gabriel escreveu que ficou extremamente chateado e pessoalmente ofendido, afinal ele havia demorado muito tempo pra escrever o livro, e é justamente sobre esse ponto que eu quero escrever, e agora, diretamente a você Gabriel.

Meu querido ex aluno, independente de você ter demorado meses, e ainda que fossem anos para terminar um livro, existe uma coisa muito importante e que talvez tenha te faltado por experiência ou orientação, que é a releitura. Num livro do Haruki Murakami chamado Romancista por Vocação, ele relata que demora aproximadamente seis meses, no mínimo, para pôr a história no papel. E após isso, ele passa os demais meses seguintes relendo e reescrevendo, tendo que, às vezes, sacrificar capítulos inteiros caso ele não os considere relevantes. Carlos Drummund de Andrade, sobre suas crônicas, uma vez disse que chegava a ficar semanas revisando e reescrevendo um mesmo texto, antes de decidir se ele era publicável. Houve textos dele que nunca viram a luz do dia enquanto ele era vivo, porque o perfeccionismo artístico dele não o permitiu publicar. Em seu livro auto biográfico, Philip Roth escreve que sua rotina de escrita consiste em escrever totalmente um texto, até que ele esgote todas as possibilidades criativas dele, e depois passar o restante do tempo reescrevendo o que ele já havia escrito. O escritor brasileiro Henry Bugalho diz que o verdadeiro trabalho do escritor não está na concepção da história, ou seja, na criação da história em primeiro lugar, mas sim na hora de revisá-la e decidir o que é necessário e relevante, e o que deve ser reescrito.

A sensação que eu tive, Gabriel, enquanto eu lia seu livro, era que você havia terminado a história, e ficou tão feliz e animado por ter conseguido concebê-la, que você não se preocupou com a revisão dela. E por mais que eu não tenha nada publicado ainda, e ainda também não tenha concluído nenhum conto, eu posso te dar uma sugestão que muitos escritores, até mesmo grandiosos, levaram em conta: não tenha vergonha de admitir as falhas de um texto. Não podemos ficar tão apegados a um trabalho, independentemente dos motivos, se demorou tempo para terminá-lo, ou se ele é importante para você. É preciso ser cético e distante do que você faz para que o seu olhar não esteja enviesado pela sua paixão, mas sim, pelo olhar de um crítico. Sua paixão pela sua obra tem que ser a mínima possível na hora de revisá-la, quase como um médico que opera um paciente com que não tem nenhuma relação afetiva, pois assim você conseguirá perceber as falhas que só as pessoas que não tem relação coma sua obra perceberam.

Deixa eu dar um exemplo: imagine que vocẽ esteja apaixonado por uma garota e a apresente para sua mãe. A sua maẽ, por não ter relação alguma com aquela garota, pode ter percebido nela coisas que você não percebeu, e tente te avisar sobre essas coisas, talvez para te proteger, talvez para te alertar. Se você estiver cegamente apaixonado, você não vai ver o que sua mãe viu. E não é que sua mãe veja melhor que você, mas é que você está apaixonado, e você so tem olhos para aquilo que lhe mais atrai naquela pessoa. A mesma coisa acontece com o seu livro. É importante mostrá-la ao máximo de pessoas possível antes de definitivamente publicar um texto, e aprender a ter humildade na hora de acatar as sugestões e visões das pessoas. Se por um acaso alguma coisa que a pessoa te disse modificar os rumos da sua história, você pode aceitar, e dar mais espaço para sua veia criativa, ou você pode simplesmente tentar escrever aquele trecho de forma que fique mais clara. As possibilidades são inúmeras, afinal, estamos falando de fantasia, e não deve existir limites para a imaginação nesse quesito. 

E também ter publicado uma obra não te impede de recolhê-la e publicar uma nova versão da mesma história. Houve situações de escritores que publicaram um livro, e por insatisfação, reescreveram e publicaram de novo. Foi o caso do Mário de Andrade com o livro Amar: Verbo Intransitivo, e do Goethe com seu poema Fausto, uma obra que lhe custou quase a vida inteira para ser escrito. O mesmo aconteceu com Lewis Carroll escrevendo Alice no País das Maravilhas, uma história que ele havia escrito, a princípio, exclusivamente para Alice Liddell, mas depois de tanto insistirem, ele decidiu reescrever e ampliar a história para o grande público. Como eu disse, as possibilidades são infinitas, afinal a obra é sua e a decisão final é sempre sua.

Além de revisar o texto, outro ponto importantíssimo que é muito negligenciado entre escritores, é a própria leitura. Um escritor é alguém que lê, e alguém que lê muito. Leia, sem julgamentos, o tempo todo. Desde grandes clássicos como Liev Tolstói e Dostoiévski a pequenos textos chulos de fofoca do site da UOL. Eu sei que acima disse que existem pessoas que são detratoras da leitura cotidiana, mas normalmente estas pessoas não são escritores, e sim professores que jamais almejarão o status de um escritor de grande nome. O artista não segue caminhos, ele cria o seu próprio. Portanto, se você acha que ler sobre astrologia e teorias conspiratórias é relevante para alimentar sua criatividade, continue fazendo isso. Aposte na imaginação que vocẽ acredita. Em se tratando de fantasia, você não precisa acreditar que as coisas que você está escrevendo são reais, apenas para fingir que sabe do que está falando. Trate sua obra de imaginação desta forma mesmo, como algo que é apenas o fruto da imaginação. Em se tratando de ficção, eu imagino que a pressão de escrever alguma coisa diminui consideravelmente quando deixamos de levar tão a sério. Obviamente a sua postura deve mudar drasticamente se você estiver almejando uma escrita científica e acadêmica, pois a seriedade com a verdade é algo muito importante nesse ramo. Independente disso, leia, e de forma crítica, de forma distante, aprenda a ler como um escritor. Aprenda a perceber as minúcias, por exemplo, como que o texto chamou sua atenção? Quais personangens foram mais cativantes pra você e por que? Quais características deste personagem mais te saltou aos olhos e por que? Aprenda a analisar as suas emoções em relação às coisas que vocẽ gosta, para você entender a forma como o público se relaciona com o trabalho de ficçõa, pois esse é o trabalho de um escritor, cativar o público. Isso só vem com estudo e experiência, e eu considero uma das partes mais divertidas, pois é entender o que está nos bastidores da escrita.

Eu vou te recomendar aqui uma lista de leituras que tenho feito nos últimos anos para você usar como referência:

Robert Mckee - Story

Nancy Mellon - A Arte de Contar Histórias
Randy Ingermanson - Como Escrever um Romance com o Médoto Snowflake (Floco de Neve).
Richard Vloger - A Jornada do Escritor
K. M. Weiland - Outlining Your Story
Francine Prose - Para Ler como um Escritor
Charles Kiefer - Para Ser Escritor
Albert Zuckerman - Como Escrever Um Romance de Sucesso
Haruki Murakami - Romancista Como Vocação
Artur Schopenhauer - A Arte de Escrever
Claudia Roth Pierpont - Roth Libertado


Estes seriam alguns dos lviros para referência e que podem te dar ideias e caminhos para alimentar ainda mais o seu sonho de escritor. Espero ter ajudado. Um grande abraço e que venham os novos episódios das aventuras de Torim.

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