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Muito Além do Conto da Aia

Às vezes tenho a sensação de que algumas pessoas acreditam que assistir ao Conto da Aia é o suficiente para transformar uma sociedade que está alienada de sua própria responsabilidade. Estas pessoas se esquecem de que a história é apenas pura ficção, uma ficção que se estende para além da história em si, porque tudo o que a cerca, depois de concebida, vira um produto. É apenas a comercialização da indignação.

Anos atrás eu me lembro de estar caçando novidades numa livraria, quando pego uma capa de um livro que parecia só faltar gritar "pelo amor, me leve daqui, você não vai se arrepender!" Não levei. 

Havia não sei quantos alertas de 'Best Seller pelo sei lá qual jornal americano que não leio', e declarações apaixonadas pelos escritores que estavam na moda naquela época, se não me engano era Dan Brown. Vocês se lembram de Dan Brown? Pois é. Acredito que daqui uns 10 anos ninguém vai se lembrar de George R.R. Martin também, então se você encontrar numa capa de um livro o seguinte parágrafo "Esta história é incrível! George R.R. Martin", você pode correr o risco de se perguntar: "quem diabos é George R. R. Martin?". O marketing do vira-latismo.

Eu entendo a necessidade das editoras recorrerem a estes apelos para que tiremos os livros das estantes e levemos para casa. Dan Brown recomendou. George R.R. Martin leu. Minha nossa, Steve Jobs já falou sobre! A sutil estratégia é a de que, lendo este livro, você estará no mesmo patamar intelectual que os caras citados. Bem, nós dois sabemos que não é verdade. Além do mais, é a velha história da imposição do inteligente, e numa boa, as três figuras citadas não tem, para mim, o requisito para ter meu reconhecimento pessoal, mas isso já é um outro assunto.

Primeiro, eu queria ver com meus próprios olhos a declaração de que estes ícones do mundo moderno tenham mesmo lido estes livros. Logo depois, eu gostaria de vê-los falando sobre o que leram, com detalhes. Quem sabe aí eu dê alguma credibilidade para a nota de contracapa que está tentando me fazer levá-lo. Por que a história é incrível, Sr. George R. R. Martin? O que exatamente nela valeria a pena meu tempo e meu dinheiro? Mesmo tendo alguma consciência de que eu vivo num sistema de comercialização de tudo, eu ainda me vejo nesses dilemas, o que você acha que acontece com alguém que não adota as mesmas preocupações? E por fim, por que raios eu deveria dar ouvidos para você? Eu odeio Guerra dos Tronos!

Quando se trata de histórias como O Conto da Aia, eu sinto como se o sistema fingisse dar ouvidos ao argumento necessário da história, e o transformasse em mera mercadoria. Quando eu vejo alguém com vestido vermelho e véu branco, eu não consigo ter a certeza de que essa pessoa realmente entendeu a mensagem. Alguém se lembra dos Annonymous? Eles se apropriaram da máscara de Guy Fawkes, para que todo mundo soubesse que eram anarquistas. Mas muita gente (incluindo minha mãe. É, eu tenho mãe) nunca tinha ouvido falar de Guy Fawkes, nem sabiam quem era Frank Miller, ou do que se tratava V de Vingança. Cheguei a escutar das pessoas coisas do tipo "é, esse filme não passa no Brasil. Por que será né?". Bem, por que será? Eu realmente gostaria de saber. Seria algum tipo de conspiração? Será que a pessoa realmente acredita que um filme como V de Vingança tem o apelo necessário para que as pessoas percebam que vivem num sistema opressor e injusto? Será mesmo que existe alguém que pensa que, apenas por assistir um filme, no dia seguinte estarão queimando viaturas e destruindo vitrines de bancos por aí? Quando se trata de adolescentes e jovens, eu acho até natural esse tipo de desejo. Mas estas declarações, por muitas vezes, saem da boca de adultos, completamente infantilizados e descolados da realidade. Adultos que não conseguiram ainda entender como lidar com a frustração de se viver em um mundo injusto e desigual. Eu duvido muito que o apelo que estas histórias tenham exerçam algum tipo de impacto radical. Talvez, no máximo, alguma discussão de cozinha, e só.

Estas mudanças, se ocorrem, vem tão lentamente que talvez nem percebamos.

O mesmo pode acontecer com O Conto da Aia. É uma história escrita por uma mulher (Margaret Atwood) para mulheres, e um programa de TV feito para mulheres. Mas em se tratando de uma história onde as mulheres são o principal objeto de uma sociedade oprimida por uma ditadura, quem mais precisaria assistir seriam os principais antagonistas desse cenário. Entendo que um programa como recebendo todo esse destaque, é como uma forma de a mulher oprimida se sentir representada, e talvez sentir um pouco do alívio de ser compreendida, mas o Conto da Aia é só o começo. Infelizmente, como tudo, ele vai parar aí, vai se tornar apenas uma lembrança difundida nessa era em que é moda contar histórias dentro da zona cinza: não há bem e nem mal, apenas o interesse pessoal, porque pessoas são mais complexas do que uma simples dualidade.

Talvez no âmago do desejo infantilóide por revolução isso funcione, mas eu duvido que, até mesmo a própria Margaret Atwood, tenha esperado que sua história servisse de combustão para alguma tipo de revolução social. Eu não acho que um escritor maduro o suficiente crie uma história seguindo essa premissa de impacto social. No fim das contas é apenas uma história, e logo mais, vira apenas mais um produto capitalista. Se alguém discorda, eu gostaria de entender a razão da venda de artigos referentes ao tema da história.

Ninguém disse que é proibido se indignar ou expressar sua indignação. Mas no mundo em que vivemos, muita gente vai se questionar se a sua forma de expressão vale o dinheiro delas.

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