Pular para o conteúdo principal

Explorando o universo narcisista

Você pode se transformar em uma vítima o quanto quiser, metamorfoseando o mundo inteiro no seu inimigo (como se todos nós tivéssemos esse tempo livre na vida). Nós sabemos o quanto de responsabilidade você carrega e finge que não é com você.

Eu te ouço gritar na rua com aquela pessoa, depois que acabou de deixar o seu saco de merda no chão. Chama a atenção, ei, você aí, esse saco de merda aqui acabou de cair da sua mão. Mas é lá que você larga, e o fedor acaba recaindo na culpa de quem está mais perto. E na multidão, como um rato imundo, você aponta seu dedo repleto das lágrimas alheias e diz "foi ele". Você chama quem estiver por perto como testemunha, que pela sedução desse maldito veneno, concorda, eu também vi, foi ele. E assim a mentira se fortalece, e mais uma pessoa se destrói nessa narrativa fraudulenta, a história sofre com mais um capítulo distorcido, e quem deveria sentir o peso do julgamento coletivo sai impune.

A biologia, porém, é maravilhosa. A natureza é maravilhosa. Ela é sim, porque ela não liga pro que você inventa para acomodar sua covardia.

Um grupo de saqueadores refugiou-se na base da montanha depois roubar todo o plantio de mandioca de um vilarejo próximo. Se era pacífico, ou se era o posto de abastecimento de um exército violento, não sabemos, mas os aldeãos fizeram acampamento, e tanto gostaram da proteção do lugar, que ali decidiram ficar. Anos mais tarde, na sua curiosidade senil, eles acordaram um vulcão que estava adormecido há séculos, e pela lava incandescente foram soterrados, seus ossos derretidos, e suas pretensões e objetivos esquecidos para sempre pela história. Não passam de vestígios.

Você é um dos aldeões, que tanto se importa em imprimir na história uma versão falsa de si mesma. Mas quem se importa com isso além do seu próprio ego? A erupção da sua consciência te atormenta no sono, não te permite dormir, porque a sua mente pesa uma tonelada. Isso se chama culpa, e a culpa é como um verme destemido que se alimenta da nossa podridão de dentro pra fora, até nos mostrar que por dentro somos um amontoado de organismos infetos.

Fazemos de tudo para mascara o nosso mau cheiro. Eu estou bem com isso, mas e você? O quanto dos cabelos ou das máscaras ou das pinturas porque você acredita que é importante demais a ponto de todos estarem olhando pra você?

Sabe a reação de um pavão quando ele não tem a atenção que exige pra si? Ele agride. Agride apenas porque não olharam pra ele. O quão infantil e pobre de espírito precisa ser um animal para ter tal atitude?

Então podemos inventar sabe-se lá qual narrativa para fazer com que nos sintamos bem com nós mesmos, é o que eu faço o tempo todo, por isso que eu escrevo. Não sei mais o quanto de honestidade pode existir na palavra de alguém que tenta desvendar a natureza humana. Pode ser apenas carta de consolação atrás de carta de consolação. Perdi o respeito pelos maiores gênios da filosofia moral, desde os mais brutalmente honestos até aqueles que são mais dóceis e simplistas. Estamos nos convencendo de que nossa natureza não é a natureza de qualquer ser orgânico do universo: o surgimento, desenvolvimento e morte. Não nascemos mais, surgimos. Acho que nunca nascemos, não temos a dignidade para isso.

Postagens mais visitadas deste blog

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.