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Diego Maradona

A memória mais antiga que eu tenho de Diego Maradona era assustadora: Era a Copa de 1994. Após fazer um gol eu via aquele homem de cabelos encaracolados gritando como um diabo louco em direção à câmera.

Porém eu cresci em uma casa mergulhada no preconceito, e o preconceito tem uma resposta rápida a tudo o que é diferente, o medo. Então para afastar o medo, categorizamos. "Que louco" disseram, "isso é a droga" disse outro, e ainda "ele é um cheirador". Pronto, a imagem do Maradona estava criada na minha mente, mesmo sem eu saber direito o que era a droga pra cheirar, apenas sabendo que era ruim porque me disseram que era ruim.

Com o passar dos anos mais adjetivos: Maradona é amigo de assassino pelas fotos com Fidel Castro. Maradona nunca vai ser maior que o Pelé. Maradona é violento, Maradona é um grosseiro, mal educado, estúpido, irresponsável, etc.

Até que me lembro um emblemático momento em que ele e o nosso maior jogador (brasileiro) de todos os tempos, o Pelé, se encontraram em um programa televisivo do argentino. Maradona e Pelé conversavam cordialmente, trocaram uns passes de bola, fizeram umas embaixadinhas, e apertaram as mãos um do outro na frente das câmeras. O tal demônio que gritava no campo parecia que estava domesticado, e aí de repente todos começaram a gostar dele.

A imagem acima é o retrato da lama em que chafurdam nosso povo. É como se aproveitassem todas as oportunidades para nos afastar da informação. A cada dia que se passa eu me convenço mais de que podemos até ser um dos maiores países da América Latina e a maior economia, mas somos também o mais ignorante e aculturado.

É triste ver o esforço diário para criminalizar o Brasil de suas próprias raízes e nos tornarmos aculturados, domesticados. A ponto de justificar o espancamento de um homem negro num estacionamento de supermercado, ou o assassinato de uma criança negra por um policial. 

Seria muito óbvio dizer que há algo extremamente errado com a sociedade no meu país quando nos incomodamos mais com o protesto do que com a obediência cega. É algo extremamente triste quando nos incomodamos mais com o apelo pela morte injusta do que com o grito de ódio.

O incômodo que Maradona causava nas pessoas é o mesmo incômodo que a autenticidade causa nos poderosos que nos querem como meras ovelhas obedientes. E se ao invés de apenas um jogador de futebol, tivermos também a torcida e o povo gritando feito demônios pela rede?

Ou que tal as drogas? Tal como fizeram com Casagrande, em que criminaliza-se a atitude do usuário sem nunca dar-lhe a redenção, mas raramente vendo uma mão oferecendo a ajuda para a libertação do vício. Há vícios que são mais evidentes que outros, mas todos eles são prejudiciais, e em todos eles precisamos de uma rede de apoio mútuo. Eu não entendo como podem, por exemplo, criminalizar tanto o vício em drogas, mas não terem o mesmo peso de julgamento quanto ao álcool, que é responsável pela maioria dos acidentes com automóveis, e o impulsionador de agressões de homens contra mulheres. Ou que tal a auto sabotagem causada pela obesidade, quando as pessoas que tem vício em comer para descarregar seu estresse emocional. Até quando vamos acusar o sintoma ao invés de debater o problema? A única forma, talvez, de lidar com os excessos de uma sociedade violenta e hostil é através do escapismo, e isso não nos torna tão diferentes assim quando analisamos de perto nossos comportamentos, não é mesmo? O que sobra é só o grito.

Aquele grito do demônio era um grito do orgulho Latino Americano que o Maradona sempre carregou para onde foi. E desde que eu cresci, fui educado a sentir vergonha de ser brasileiro. Nossa cultura não está nem em segundo plano, ela é, pelo contrário, uma mera anedota no nosso cotidiano. Uma nota de roda pé facilmente ignorada.

Por conta destes excessos, no início da adolescência eu me fiz radicalmente antiamericano. Eu me recusava a tudo o que vinha dos EUA. Usava tênis e sapatos de fabricação artesanal, roupas de marcas brasileiras, shampoos e sabonetes de marca brasileira, e não ouvia bandas americanas. Não lia autores estrangeiros, apenas brasileiros ou latino americanos. Eu me recusava a deixar essa onda americana me transformar em mais um entreguista que sabota as tentativas de me libertar genuinamente do domínio cultural. E como Maradona foi julgado de louco, também o fui, assim como vejo qualquer outro que tem essa postura radical sendo ridicularizado e desprezado.

É triste ver o quão entreguista e pouco consciente o meu país ainda é. Por essa razão que não consigo mais assistir televisão, porque eu percebo a falsidade por trás de todo aquele teatro civilizatório.

Sendo um jovem é difícil viver sob esse tiroteio social, mas vamos nos adequando.

A vida de Maradona precisa ser lembrada como a vida de alguém que nunca se ajoelhou perante soberania alguma que não fosse a da sua própria ancestralidade. Não é crime e nem condenação exigir soberania, e se for, morreremos tentando, como criminosos, mas com a consciência da pureza da nossa necessidade. O inimigo não é o nosso povo e nem nossa cultura. O inimigo é quem inventa leis pra criminalizar nosso grito demoníaco de liberdade.

Descansa en paz hermano.



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