Pular para o conteúdo principal

A romantização da miséria na mentalidade liberal


Enquanto a esquerda que se deu bem na vida e foi cooptada pelo podre sistema passa os dias impondo como as pessoas devem se portar moralmente, vemos no outro lado, o liberalismo econômico invadindo e sugando os recursos dos países que tem a estrutura social fragilizada para combater o roubo.

Todo liberal condena a estatização. Mas eu nunca vi um liberal condenando a pobreza com a mesma força. O liberal parece condenar mais o pobre do que a pobreza em si. Porque o pobre representa o fracasso de uma das principais muletas do liberalismo, que é o empreendedorismo individual.

Num país que tem suas riquezas roubadas diante dos nossos olhos, desde sabe-se lá qual década, vendem a nós a narrativa de soluções imediatistas. Então o homem que passa a vender água no farol já não é um trabalhador que está na linha do desemprego. Ele é retirado desse número, e as fatias e porcentagens que poderiam queimar o filme de um governo sem planejamento já não se tornam mais o problema. A solução chega a partir de um simples ajuste de definição.

É como quando, incomodados com a existência da miséria e o peso e culpa que isso trazia, decidiram chamar essa categoria de pessoas de "abaixo da linha da pobreza". Então não temos mais um trabalhador em estado precário e sujeito a todos os riscos, temos um novo empreendedor. Ele não é mais um sobrevivente que está correndo contra o tempo e apostando sua última esperança numa tentativa de fugir da falência total. Ele é um homem que pensa como um liberal, um homem que vê oportunidades.

Não existe glamour algum em ser pobre. Não é legal, não é um estilo de vida, não é uma situação de curiosidade. A pobreza é o resultado da opressão desse sistema injusto em que vivemos, que brutalmente retira das pessoas toda e qualquer condição de ascender socialmente para não exigir, lá na frente, uma partilha mais justa dos faturamentos bilionários do país.

Há uma cena destas no livro Vidas Secas de Graciliano Ramos. O cabra Fabiano, analfabeto funcional, ignorante, animalizado pelo meio em que vive, precisa negociar o pagamento do seu trabalho com o coronel que o contratou. Quando vai receber o seu dinheiro, o coronel passa a colocar um monte de ressalvas para reduzir o valor acertado antes do trabalho ser feito. Fabiano sabe que está sendo lesado, ele sente isso, ele se angustia por causa disso, mas ele é ignorante e analfabeto demais pra entender como se defender.

Eu vejo nessa cena um dos retratos mais perfeitos do que é o Brasil em qualquer cenário em que se lide com o trabalhador. Seja você um morador de favela ou de um prédio de condomínio de região nobre, todas estas pessoas sabem que estão sob o risco de perder tudo aquilo que conquistaram, e é por isso que as pessoas tem trabalhado tanto. Esse risco vem sob a mão implacável do liberal que, mais tarde, vai justificar com o fato de que você não empreendeu o suficiente.

Adoram tentar explicar o Brasil sob essas ideias importadas da Europa, quando o que deveríamos discutir é o quanto o nosso país é roubado o tempo todo. Deveríamos discutir o porquê da não regulamentação da imprensa, por que das trocas de favores entre os Três Poderes, deveríamos discutir porquê do não fortalecimento do ensino de base, porque da não gratuidade da formação dos professores, policiais e médicos, especialmente nas bases dessas categorias. Deveríamos questionar o porquê da insistência na narrativa das misérias nas televisões e jornais.  

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Chamas de Yemanjá

Almíscara penumbra O ar que pesa em febre As sedas ardem chamas Verte-me a maré da criação. Recebo em exortação As faíscas que te explodem sob a pele  Cubram-me, estrelas cadentes. Ergo-te minha aberta taça Largo anseio a coletar Neste cristalino cálice As pérolas de deleite mar. Perfeita ondulação Com um arqueio para trás Transmuto em Eva Rosa aberta das Mil Noites Das mil insaciáveis noites! Sem medida. Deixe que caiam Que cerquem-nos as brumas Banham a alma o noturno orvalho Ouça este canto É a beleza do profano hinário. Neste sonho vivo Altivez de devoção cutânea  Rito ao lúgubre exorcismo  Governa e acata simultânea. Sorve dominada a benta água Aceita a nativa incumbência  A viva e infinita exultação. Quente e pesada Cai a noite Salto na cidade inteira Soltas rubras copas Sem medo Reflexo brilhante das estrelas Embebe o lacre dos segredos. Quente e pesada Em açoite Salta a cidade inteira Um, dois, três, quatro Brindem ao pórtico Abraçados às cortinas Rasguem o m...

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Dez Mil Dias

Certo dia foi assim Peguei o ônibus Sentei na calçada fria Esperei falarem comigo Deixei a mão suspensa, em vão E em um gole, matei minha sede Para no segundo seguinte Você não estar mais aqui.  E soube certa vez Que não estava mais aqui Às vezes Quem não está Parece nunca ter partido. Te via na luz Te via no amanhecer Te via Te vejo Na minha vontade de morrer. Tua voz que parei de ouvir Ainda soa para mim. O teu perfume de ternura Sinto em todo lugar O teu semblante de aurora Vejo-o nas pontas dos dedos. E sobreponha a  eternidade Entre o que plantou em mim E o fim do mundo E você ainda estará aqui. É assim mesmo. Porque  Ante a catástrofe  A confusão A existência O desamor e a desilusão A tristeza e o rancor As mágoas e a reclusão Três palavras Quatro sílabas A minha incapacidade humana de decifrar A dissolução da minha angústia: Eu amo você. 📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿📿 Tudo isso começou no dia 06 de Maio de 1998.