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A Culpa é Deles

Texto por: Borges Sanatore "A razão de eu estar tão amedrontado e tão enraivecido é a realização de que vivemos num mundo podre repleto de abutres gananciosos que há muito tempo se esqueceram do valor da lealdade. Desde cedo somos ensinados a ter lealdade apenas aos nossos prazeres imediatos e às nossas necessidades fúteis, vãs e mesquinhas, e temos passado adiante estes valores às nossas crianças, sem perceber que elas estão a caminho de virarem adultos frustrados, mimados, inconformados com a realidade. A ação lhes foi roubada quando o conformismo tomou conta dos seus corações, e elas simplesmente aceitam a tudo, contentando-se apenas a reclamar, simplesmente reclamar. Agora por quem lutar senão por nós mesmos? Nós, humanos, somos uma imensa tribo, mas temos dificuldade de nos reconhecer como tal. Temos dificuldade de olhar para nossa casta e perceber que estamos destruindo e matando uns aos outros em busca do nosso único e puro hedonismo. Nós, humanos, somos uma imensa tribo, mas nossos líderes nos traíram. Eles tentam nos enganar e dizer “vocês, trabalhando, podem também chegar onde eu cheguei” mas será que é isso mesmo o que queremos? Chegar ao mais puro ecstasy da futilidade e sedentarismo às custas da miséria, fome e morte dos outros? Como seremos leais a pessoas que, desde cedo, nos ensinam que nos querem como escravos para lhes servir o bem-estar. Não nos deram mais escolhas. E eles equiparam bem a todos os meios e mecanismos para que nós, não somente nos voluntariemos a sermos estes escravos, como também defendamos com unhas e dentes o nosso direito à não liberdade. O trabalho moderno é a escravidão da mente, somos programados desde muito cedo, desde as nossas primeiras lições de alfabetização, a aceitarmos o lugar que nós é cabido, e só então, muito mais tarde, como adultos em frangalhos, sem a força que sabemos que temos, tomamos a nossa realização. E quando estamos prestes a nos organizer e mostrar a nossa força, eles soltam os seus cães de guarda, seus carniceiros acostumados a comer a podridão de seus dejetos, para que os defendam “esforce-se, acorde mais cedo, trabalhe mais, qual é a sua desculpa?”. Não, isso não se trata de desculpa, isso é apenas o mais puro e genuíno ódio enclausurado, que tentamos disfarçar e esquecer com toda a estupidez e todo o lixo que nos mostram nas redes sociais, os vídeos, as postagens, os textos recortados e apócrifos, as mensagens que nos acalentam a depressão, apenas para que consigamos dormir bem conosco mesmo. Quantos miseráveis e pobres existem e quantos milionários e seus cupinchas de bota e farda existem? Somos a maioria, e se nos fosse permitido perceber isso, eles é quem teriam pavor de sair de casa, não nós. Seja você branco, preto, homem, mulher, hétero, gay, cristão ou não cristão, seja você quem for, se você treme e perde um pouco a respiração quando pensa que não pode ser capaz de pagar os seus boletos, e se você tem pesadelos em que perde tudo o que conquistou até agora, então você está do lado mais fraco e mais impotente, você é, também, um escravo. O trabalhador é isso, apenas um escravo. E veja o que fizeram conosco. Veja só o que fizeram conosco! Você não vê os seus pais, ou se os vê, eles estão tão irritados e impacientes que não conseguem mais responder a uma pergunta sem te fazer chorar por dentro. Pouco a pouco ele vai destruindo a sua inocência e sensibilidade, mas a culpa não é do seu pai e nem da sua mãe: a culpa é deles. Você não transa com seu parceiro faz tempo, mas olhe para você no espelho. Você é digno de pena, com sua cara desmanchando e seu corpo repugnante, esse corpo e essa feiura que você tenta disfarçar com o cosmético que você comprou daquela celebridade que você almeja ser apenas para não sentir nojo de si mesmo. Mas a culpa não é sua ou do seu parceiro, a culpa é deles. Quando você termina de pagar suas despesas, o que te sobra é para comprar a bebida ou a droga que te faz esquecer por alguns minutos a sua vida de merda. E quando você percebe, você é um viciado, um pária, um improdutivo, alguém que merece ser esquecido, trancafiado, eliminado, alguém que não merece ser alguém. Mas a culpa não é sua, a culpa é deles. A sua miséria é sempre a culpa deles, e eles não param, eles estão organizados, todos os dias, na TV, na internet, nas propagandas, nos sorriso afetados e cheios de maquiagem, nas roupas, nos filmes, nos seriados, em todo lugar que você olhar, eles estão lá com promessas vazias de que você também terá o seu lugar, mesmo sabendo que é mentira, eles alimentam isso, essa esperança falsa e vazia para que você continue trabalhando para eles, enriquecendo eles, e tornando o lugar deles cada vez mais distante do seu. A culpa é sempre deles. O que seria mais fácil? Tornar-se eles ou destruí-los? Agora, por que você os defende? Quem são eles? Você sabe muito bem quem são eles. Eles são o que você quer ser, até mesmo o mais dissimulado, que se disfarça de humano, de samaritano, de líder, de porta-voz, você só quer ser como eles. Desde a forma como você escova os dentes ou amarra os seus sapatos, até mesmo no seu vocabulário, na sua forma de se sentar na cadeira, na sua forma de respirar. Deus do céu, até mesmo na forma como você olha para o lado quando alguém te chama, em tudo o que você faz, isso é só uma tentativa de ser como eles. Eles destruíram o seu lazer, roubaram o seu sorriso, poluíram o ar que você respira, e a água que você bebe. Eles te fizeram sentir culpa pelo mundo que eles destrúiram, e tiram o seu dinheiro para consertá-lo. Eles te vendem o lixo que você come, eles roubam, pouco a pouco, o espaço em que você mora. Eles te tiram o direito a ter a sua própria terra, e a plantar seu próprio alimento. Eles te ensinaram apenas a trabalhar para eles, não para você mesmo. Eles te roubaram a capacidade de ser o líder da sua própria vida. Eles te endividaram, prometendo mentiras como a sua casa própria e seu próprio veículo, fazendo-lhe esquecer que tem pernas. Eles te jogaram para buscar o seu sustento a quilômetros de distância do seu lar. Eles te tiraram o direito de ter sono e ter descanso. Eles te tiraram o direito ao ócio e à criatividade. Eles te roubaram o direito de escolher o que você quer aprender e escolher em quem ou em que acreditar. Eles te amedrontam, todos os dias, com suas falsas profecias e suas falsas promessas. Eles criaram na sua mente fantasmas que não existem. Eles fizeram você se acocorar dentro de casa como um covarde inativo incapaz de eliminar o mofo e o limo das suas articulações. Eles te roubaram a saúde e o direito de cuidar dela. Eles te roubaram o seu direito de planejar a sua própria família. Eles te ensinaram a mentir para si mesmo, e para as pessoas ao seu redor. Eles te roubaram o direito de sonhar, e te deram no lugar, uma esperança falsa e vazia, intangível, e você sabe disso, mas mesmo assim... Eles te roubaram a infância, a adolesência, a vida adulta e até a sua velhice. Eles te roubaram até mesmo o seu direito de morrer. A culpa é sempre deles, não sua, não dos seus pais, não dos seus amigos. A culpa é deles. A sua tristeza e miséria é apenas culpa deles. Quando é que você vai começar a tentar ser mais como você mesmo?

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