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Crer

Sinto inveja dos que crêem. Os crentes levantam de suas camas sabendo para onde ir. Não falo do crente em Deus apenas, que é agarrar-se tão poderosamente à esperança, que a vontade da vida segue muito adiante, antes mesmo que ela aconteça, ainda que não aconteça. Falo também do crente em suas próprias ideias, do crente em seus afazeres, o que crê também na família, no trabalho, na ciência, na mudança de si próprio, ou que crê tão cegamente na incerteza do dia-a-dia.

Eu invejo os crentes e os que se agarram às suas crenças. Não crer é como perambular, existir sem propósito em um mundo em que tudo parece gritar pela necessidade de ser alguma coisa. Ainda que se caia um galho de uma árvore, minutos antes ou depois que se possa tropeçar neles, crer que existiu algum propósito. Crer em algo é nutrir a esperança. A mesma tristeza vazia de uma flor morta é o sentimento de uma concha oca, que emite o som do mar quando colocamos perto dos nossos ouvidos. Ser oco é reconfortante, porém o oco que não se contenta com o próprio vazio vive em tormento.

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