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Crer

Sinto inveja dos que crêem. Os crentes levantam de suas camas sabendo para onde ir. Não falo do crente em Deus apenas, que é agarrar-se tão poderosamente à esperança, que a vontade da vida segue muito adiante, antes mesmo que ela aconteça, ainda que não aconteça. Falo também do crente em suas próprias ideias, do crente em seus afazeres, o que crê também na família, no trabalho, na ciência, na mudança de si próprio, ou que crê tão cegamente na incerteza do dia-a-dia.

Eu invejo os crentes e os que se agarram às suas crenças. Não crer é como perambular, existir sem propósito em um mundo em que tudo parece gritar pela necessidade de ser alguma coisa. Ainda que se caia um galho de uma árvore, minutos antes ou depois que se possa tropeçar neles, crer que existiu algum propósito. Crer em algo é nutrir a esperança. A mesma tristeza vazia de uma flor morta é o sentimento de uma concha oca, que emite o som do mar quando colocamos perto dos nossos ouvidos. Ser oco é reconfortante, porém o oco que não se contenta com o próprio vazio vive em tormento.

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Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

O Lago

Caminha entre alamedas tortuosas E a abóbada de bosques sigilosos Adentro a mata o encanto avistai Repousa obliterado o grande lago. E largo encontra em límpido repouso Defronta diante em margem distorcido Silêncio com remanso se emaranha Enigma malcontente insuflado. Atira-lhe uma pedra e de onde em onda Emergirá um monstro adormecido Até que venha o próximo remanso Até que a fenda em sangue desvaneça.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.