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A Balança das Moedas de Ouro ou o Teatro de Ruínas

"La giustizia è cieca e stupida. Con le mani arcuate verso l’alto, aspetta che il peso dell’oro inclini la bilancia."

A justiça é cega e estúpida. Com as mãos arqueadas para cima, ela espera que o peso do ouro incline a balança.

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Não me venham falar de justiça. Isso é uma farsa encenada por homens acuados pela beleza do caos da natureza. Patética, tola tentativa, de impor simetria ao universo com suas réguas de madeira e pastas de cartório. Pintam a balança, cobrem os olhos da estátua com seda ou cetim, e chamam de deusa. E o bronze que reflete os que a contemplam, com suas togas e seus malhetes cravados em jóias, mostram o reflexo tortuoso da selvageria da realidade.

Ela é cega, dizem, a nobreza de enxergar um horizonte achatado. Mas já existe a medicina e a ciência avançada para curar a cegueira dependendo da fortuna investida. Cega, não por pureza, só conveniência mesmo. Mais do que cega, é estúpida e ambiciosa, com suas mãos estendidas, as palmas viradas para cima, arqueadas, esperando pela verdade do peso da moeda. Só com o peso do ouro a balança pende e a justiça está feita. 

Conhece a história de quando os homens mais poderosos do mundo decidiram erguer um monumento a si mesmos e escolheram o deserto da opulência? As árvores mais belas e os corpos de água mais libidinosos despejavam com abundância, e ali ergueram um altíssimo forte, um castelo de mármore, ouro e prata, todo cravejado em diamantes e rubis. Um monumento de compensação ao fracasso, o enorme reflexo da pequenez. E então, quando a última pedra é colocada e a inauguração é marcada, vem ela, a maior verdade, a minha amada natureza, e sacode o chão, parecendo um animal indomável tentando coçar corpo afora uma pulga inconveniente, e todo o castelo de mármore vira poeira. Os homens entreolham-se acusando uns aos outros pelo fracasso do projeto. Eu não consigo senão rir. Eu não inventei essa história apenas para provar meu ponto.

Natureza, não reconhece nossos códigos, porque ruge e rasga, ela se deleita, não tem relatórios e nem seus favoritos. Ela vê uma criança desesperada implorando por um prato de comida, e a esmaga com a mesma suavidade com que banha suas costas marinhas. Já ouviram um raio pedir desculpas por cair, ou um lobo sentir remorso por dilacerar o pescoço de um cordeiro que estava ridiculamente parado como se esperasse pela morte?

O que tem de honesto nesse teatro jurídico? Com roteiro escrito em bastidores, um diretor oculto conduzindo a cena. Mas ah, deram ganho de causa para o homem menor um dia desses. Pura performance, puro convencimento de ainda tenta nos dizer "eu vejo vocês, de vez em quando, só que é difícil distingui-los em tantos trapos da mesma cor. A tonalidade do ouro é mais vistosa, portanto..."

Essa justiça divina é na verdade doméstica. Uma coleira de couro no pescoço humano, construída pelo próprio homem, da pele do próprio homem, para manter os mesmos homens em seus cercados feitos de ossos de outros homens. Da cancela para o lado de lá, criam as leis como quem traça os trilhos de um trem que vai andar apenas em linha reta. O maquinista na frente, os conduzidos, atrás, crentes.

A beleza do mundo está justamente no fato de que ele não se importa com estas réguas, com o mármore, com as cercas e nem com nossos trilhos de trem. Não se importa nem com os nossos ossos triturados que lhe serve de alimento ao solo. Talvez pense "que lástima, não tem outra coisa melhor para saciar minha fome? Deixe para as hienas com seus dentes podres!" Onde cai o sangue nasce a primavera. O choro da viúva é acompanhado pelo gemido de uma jovem no auge da sua luxúria. Durante o velório de um filho assassinado está sendo celebrado, em outra parte do mundo, o nascimento do novo ditador da nossa era. Essa crueldade repleta de dignidade não se descreve em regras de incisos ou artigos. Caput!

Seus tribunais não são torres de justiça, são uma prisão. Suas sentenças não são pela glória da ética ou da moral, senão pela glória dos que brindam em blends, o estalido dos copos que tenta ocultar o grito dos que foram condenados com uma pena mais pesada do que o crime cometido.

A única balança que realmente pesa com igualdade é a do abismo que fingimos não estar.


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